Xavier Placer
Era o dia 15 de julho. Fazia uma semana que Cesário havia chegado do Seminário.
Ao levantar-se, naquela manhã, não vestiu mais a batina. Também não teve coragem de aparecer a ninguém e fechou-se em seu quarto.
No dia seguinte mostrou-se em casa, não ousando porém sair à rua.
Convencera-se de que era preciso conquistar a nova situação sem ruído, lentamente… Mas isto (ele não o ignorava) não passava no fundo de um pretexto, escondendo realidades em que na verdade evitava tocar.
É estranho até que ponto somos criaturas de hábitos!
A mesma timidez que o fizera sofrer, anos antes, quando vestira a batina, repetia-se de maneira inversa ao tirá-la. É que ele se adaptara não só interior, mas exteriormente a ela, e as roupas leigas, agora, davam-lhe uma sensação de desnudamento.
Cada parte de seu corpo como que estava disciplinada por um ritual de gestos que, de chofre e violentamente, perdiam a sua razão de ser. Sentia-se no vácuo.
Tentando iludir-se, deixou-se ficar em casa aqueles dias, entregue à leitura dos livros que meses antes não levara para o Seminário.
Mas lia agora maquinalmente : às vezes, ao fim de uma página inteira, devia tornar ao começo – não compreendera nada.
A “presença” da nova situação que ia defrontar crescia como uma força latente, que de súbito deflagará…
Ele compreendia tudo isto – “numa situação destas, e eu lendo, lendo, é incrível!” – mas a vontade, intimidada, retraía-se. Às vezes surpreendia-se com pensamentos deste gênero: “Como é dolorosa a transição de uma vida, que já se tornou passado, para um futuro ainda imponderável!”
Dominava-o, sobretudo, um imenso receio do desconhecido, e estas apreensões, rebeldes a qualquer controle do raciocínio, espraiavam-se pelas páginas diante dos olhos que liam, que teimavam em ler para iludir-se…
“Que fazer”? – pensava em certos momentos, atirando o livro para um lado. “Qual o primeiro passo a dar? Durante longos anos preparo-me para uma vida tão diferente, e eis que, de uma hora para outra, tudo perde a sua razão de ser… Terrível experiência. Quanta ingenuidade em meu gesto. Como eu imaginava tão outro este lado dos fatos! Agora é que eu compreendo as consequências do meu gesto. Deixei o Seminário e estou diante de um meio do qual nada conheço… quer dizer, devo recomeçar tudo como se nada tivesse feito!”
Nos dias que se seguiram, um desânimo mortal não lhe permitiu ler nem ocupar-se em coisa alguma. Não conseguia absorver-se em nada. Deixava-se ficar estirado na cama, silencioso e indiferente, como à espera de que um acontecimento qualquer, um milagre, viesse resolver aquela situação.
Mas que era aquilo? Arrependimento diante da situação que ele próprio se criara? Não. Assaltavam-no sentimentos vagos, que não sabia definir, e que lhe apresentavam os fatos como um longo pesadelo.
Em casa respeitavam o seu estado de espírito. Nenhuma alusão, nenhuma pergunta inconveniente; apenas um discreto silêncio cheio de estupefação.
Sua saída fora para todos uma resolução incompreensível. Não haviam pressentido nada e sentiam-se como que logrados. Com o ar da notícia mais natural, Cesário lhes enviara, à hora do embarque, este lacônico telegrama: “Deixei o Seminário parto hoje pela manhã abraços”.
Eles ainda julgaram tratar-se de uma doença ou de outro motivo deste gênero, até que no dia da chegada, Cesário tivera que desfazer o equívoco.
– Não é isso, desisti, vou deixar a batina, não pretendo continuar… respondera com uma brutalidade cuja lembrança depois o fizera sofrer.
“Mais tarde, refletiu no primeiro momento, quando tudo se acomodar, explico-me. Ou eles próprios compreenderão e nem será preciso…”
E assim havia posto todos à distância.
No domingo saiu pela primeira vez; decidira ir à missa.
Na rua tinha a impressão de que todos o conheciam e o olhavam surpresos.
Apoderou-se dele uma profunda pena do ser “tão diferente dos outros que era...”
De quando em quando, porém refletia que aquilo era fraqueza de sua parte, que não devia importar-se com ninguém e revestia-se de novo de coragem.
Frágil reação. Dois passos adiante cumprimentava um conhecido, que o encarava admirado, talvez acreditando equivocar-se (como estas pequeninas coisas o feriam!) e a coragem o desamparava novamente.
Mais tarde, ambientado já no novo meio, recordou-se muitas vezes daquele domingo e perguntou-se: “Mas afinal, porque iria eu à missa naquele dia? Sinceramente, eu acreditava naquilo? Não, não acreditava. E ainda que não ousasse desacreditar, a verdade é que tudo me era indiferente. Porque então? Sem dúvida, concluíra Cesário, naquela época ele era dois. Um que repudiara tudo, sob o desnorteamento do primeiro choque, exagerado em extremo; mas o outro, o seminarista que nunca morre em quem uma vez o foi, esse lutava por conversar o lugar conquistado. Sim, só podia ser isto! Nunca a força do passado fora nele tão selvagem, como naquele domingo absurdo.
Entrou na igreja. Ajoelhou-se, esteve a rezar recolhido. E a certa altura: “Afinal, se vim, é porque não perdi de todo a fé!”
E este pensamento fê-lo lembrar-se da entrevista com o arcebispo, no dia seguinte à chegada.
As palavras do velho prelado, tão compreensivo e sereno, além mesmo do que Cesário esperava, afloraram-lhe à memória: “O senhor não perdeu a fé, não, meu filho. Procure preservá-la enquanto é tempo. Apesar de tudo, continue fiel a Nosso Senhor, está ouvindo? Aliás os senhores têm maior responsabilidade que os outros. (Referia-se aos leigos). Eles nada sabem, os senhores sabem tudo”.
Murmurara um “compreendo, sr. arcebispo” e beijando-lhe o anel, retirara-se.
Do lugar onde se ajoelhara, via naquele momento uma fila de mulheres, com um ou outro homem, esperando a vez para confessar-se.
“Vou aproximar-me também dos sacramentos”, decidiu de repente Cesário, dominado por um sincero e ardente entusiasmo. “Que tem a saída com a minha alma?” continuou ele. Não foi justamente para salvá-la que eu desisti do sacerdócio? Vou fazer o que me aconselhou o sr. arcebispo, vou continuar fiel à minha educação religiosa, fiel aos meus antigos princípios, só eles me farão menos infeliz.”
Aproximava-se a hora da missa. O sino da matriz tocara pela segunda vez. O recinto estava repleto.
Levantou-se do lugar em que se achava e, sem discutir mais sobre o que devia fazer, foi para a fila, aguardar a vez.
Dali a pouco ajoelhava-se no degrau do confessionário.
– Quando foi a última confissão, meu filho? indagou em surdina a voz lá de dentro.
– Há uns quinze dias, padre.
– Sim. E de que pecados se acusa então para cá?
Cesário começou a acusar os pecados de que se julgava culpado.
Ao terminar, o padre quis saber:
– Meu filho, o sr. é Congregado Mariano?
– Não, padre. Sou ex-seminarista.
– Ex-seminarista?
– Sim. Deixei o Seminário há uma semana.
– Estava muito adiantado?
– Havia começado o curso de Teologia.
– Compreendo. Perdeu a vocação, meu filho? Ou foi por motivo de outra ordem? Não julgue que é inútil indagar isto, ouviu? O confessor, como o senhor não deve ignorar, tem que estar a par das circunstâncias…
– Sei, padre.
E procurando conter a emoção que o dominava:
– Mas quanto à sua pergunta não sei como lhe responder. Saí porque… Não sei, padre. Talvez um dia eu venha a compreendê-lo, por ora os motivos profundos me escapam…
Calou-se. Ouviu o ruído de alguém que se endireita num banco, e em seguida a voz do padre, num tom comovido, que o impressionou:
– Um ex-seminarista! Estou temendo pelo senhor, meu filho. Deixou o Seminário e ei-lo agora diante de uma vida da qual nada conhece. Nada conhece! Que digo eu? Nem sequer pressente, diria melhor. Sabe o que é o mundo, meu filho? Ouça as palavras do Discípulo Amado: “Omne quod est in mundo concupiscentia carnis est, et concupiscentia oculorum et superbia vita”. Ah, meu filho, como os homens desprezam a salvação da própria alma! No entanto, é só o que importa. Não são palavras da Sagrada Escritura: “Quid prodest homini, si mundum universum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? E como os homens dão tão pouca importância a estas verdades supremas! Que espetáculo desolador, verem-se os filhos de Deus e membros de Cristo, convertidos em escravos de Satanás. Que troca indigna, que sacrilégio! Deixarem as santas doutrinas do Mestre, os insubstituíveis ensinamentos da Igreja, para se apegarem às máximas do mundo. Desse mundo que Deus Nosso Senhor amaldiçoou! Quantos a esta hora não sofrem o fogo das penas eternas porque desprezaram as graças de Deus, porque resistiram, fecharam o coração aos seus convites amorosos, deixando-se arrastar pelas más paixões!... Viveram segundo a carne, e não conforme o espírito, preferindo o lodo às águas puras que brotam para a vida eterna. Mas o senhor, Deus Nosso Senhor o salve disso, não será um filho ingrato, não é?
Cesário ouvia-o com atenção e murmurou um “sim senhor”. O padre retomou o fio:
– Sim, arme-se de coragem. Não julgue que a fé prescinde da prática da religião, isso é um erro grave, uma blasfêmia. Lute, esforce-se, lance-se no seguimento de Nosso Senhor Jesus Cristo. A coroa é dos fortes, meu filho. Vigie os seus sentidos cada minuto, pois um simples olhar pode ser como uma fagulha que provoca um grande incêndio. Àquele que se entrega sistematicamente ao pecado, Nosso Senhor reserva o pior dos castigos, a inconsciência da própria miséria. Oh, ruína da alma quando o mal se tornou um hábito! E a quantos a morte não surpreendeu nesse deplorável estado? A morte. Os ímpios, os libertinos, os pretensos sábios têm procurado duvidar de tudo, pelo menos em suas palavras e atos. A morte, porém, nunca se lhes apresentou duvidosa. É a grande lei universal, o tributo do pecado. E sabe o senhor quais são os maiores males do mundo, meu filho? O orgulho e a sensualidade. Não pense que vai encontrar, como diz o grande Padre da Igreja São Jerônimo, “nesta coberta de cardos e espinhos, de que se alimenta a serpente que tentou Eva”, não pense que vai encontrar a paz. Não. Mil perigos o esperam. E o mais grave deles, repito, é a sensualidade. Bem sei que o senhor não pode ainda compreender o alcance desta afirmação. Para isso, seria preciso que tivesse uma ideia exata do que representa na vida a mulher. Ah, fuja dessa serpente de mil tentáculos, meu filho! Foi por ela que o pecado entrou no mundo. Foi por ela que o grande rei David se tornou objeto dos ódios divinos; por ela Salomão se perdeu; por ela… ah, os exemplos seriam sem conta! “Terrível, diz a Sagrada Escritura, terrível é a mulher quando ela pode!”
O padre continuou neste tom algum tempo, terminando por aconselhar a leitura de um livro “em que todos estes salutares ensinamentos de grande importância para a salvação da alma, estão sistematizados por um genial e abençoado educador da mocidade, (declinou-lhe o nome) ouviu, meu filho?” Quando se levantou do confessionário, a missa já havia começado. Assistiu-a contrito, e à hora da comunhão aproximou-se da mesa eucarística com a mesma piedade dos seus antigos dias de Seminário.
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Na verdade, aquela ideia que à princípio o assaltara “ É incrível como certos religiosos vivem distanciados da realidade” fora involuntária. Mas a coisa voltava novamente. E com um ímpeto ainda mais brutal. Até que, sentindo incoercível aquele sentimento de revolta, abandonou-se inteiramente a ele.
“Mas que moral imbecil esse homem acaba de me sugerir para uma nova vida! Assim não é possível. Não há boa vontade que resista. A seguir seus conselhos, só me resta uma coisa: voltar de novo para o Seminário. O que ele me aconselha não foi justamente a minha tentativa desses anos passados?
Pousou a cabeça entre as mãos e esteve por alguns instantes imóvel, sem um pensamento. Dali a pouco porém a coisa recomeçou: “Que fazer? Devo então deixar-me arrastar pela correnteza, para depois… Mas uma conduta moral, após este aprendizado, não será uma volta de filho pródigo? E se esta volta não se realizar? Haveria a conquista de um rumo que correspondia de fato àquilo que era? Não haveria um desnorteamento?
Por outro lado, será realmente moral uma escolha onde a experiência pessoal não foi a pedra de toque? Quando será que uma aceitação a priori não impede o desenvolvimento normal da nossa personalidade? E afinal, que se pode entender, que entendo eu por desenvolvimento normal de uma personalidade?”
Levantou a cabeça e com os olhos fixos no tabernáculo:
“Senhor, porque não te dás senão através de parábolas e símbolos? Tu não sabias… oh, eu estou só e desnudo diante de ti, Senhor! Onde está o sentido da vida? Que é a vida? Porque existo? Para que existo? Haverá alguém mais sinceramente disposto a seguir um caminho moral, contanto que não veja aniquilada toda esta força que se agita em mim, que também sou eu, que tem direito de viver, por que existe?
E sentindo-se cada vez mais agitado, mais fora de si:
“Não, mil vezes não! Como é difícil ser sincero! Senhor, tu que lês nos corações, ensina-me a sê-lo, dá-me força e coragem de o ser, mesmo contra mim, mesmo contra todos! Oh, onde está a palavra que os livros não me disseram, que os homens não me souberam dizer, e que eu próprio não sei articular? Onde estão, Meu Deus, os mestres, verdadeiramente sábios e humanos dos meus dezoito anos? Vê, todos os que se apresentam com autoridade, ou sem ela, de orientadores, pedem-me a abdicação do “momento que passa e nunca mais” em favor do espírito. Eu não a quero fazer. Eu não a farei, Senhor! Eu quero uma solução total, eu quero… Meu Deus, como é miserável a condição do homem sobre a terra, quando ele desconhece aquilo que justamente é indispensável conhecer. Como ele é só, o rei da Criação, como ele é só, com a consciência de sua miséria! Ah, as grandes cidades onde os homens se atropelam, uniformizados nas teorias e mecanizados dentro de seus inventos! Como é triste a solidão que cada um carrega em silêncio no íntimo de si, como é terrível! Em que parte remota de cada um deles se oculta o espírito e a tua presença onde está? Não, meu Deus, ninguém pecou com os nossos primeiros pais, ninguém tem culpa. Ou se o fizemos, há muito que a vida apagou em nós a noção da queda, tu nos abandonaste, tu nos abandonaste…
Mas eu não te quero, eu não te quero, Senhor, se para te possuir tu exiges a mutilação do meu destino, a destruição da minha alma.
Oh, porque não me deixaste ficar na tranquila ignorância do imenso rebanho que caminha nas grandes cidades, sem a consciência da solidão e do próprio destino? Porque vieste? Se não tivesses vindo e não me houvesse falado, eu não pecaria!
Mas eu blasfemo. Eu sei que blasfemo. Senhor! Perdoa-me. Eu não te quero substituir em meu coração, Senhor! Eu continuarei agarrado à consciência de que tu existes e me julgarás no último dia, a mim e aos meus grandes pecados… Faze de mim, um réprobo, expulsa-me para sempre da comunhão do teu Amor, transforma-me à face dos homens num exemplo de inconsequência culpada – e eu me envolverei no meu próprio desespero como um condenado… Tu vencerás, eu sei, (a estas palavras Cesário sentiu que lágrimas ardentes lhe banhavam a face) mas eu viverei no meu inferno o orgulho de ter rondado o abismo e de me ter precipitado nele com a minha trágica liberdade, essa imensa liberdade que os teus eleitos desconhecem!”
Cesário levantou-se precipitadamente; as criaturas, as coisas, tudo lhe parecia girar, girar, girar impelido por uma tempestade que aquelas palavras houvessem provocado.
“Como é estranho encontrar-me ajoelhado em um templo”, pensou saindo meio desnorteado para o jardim. Aquilo era como se fugisse de um terremoto, era como quem desperta de um sonho mau…
A praça estava calma e deserta; apenas algumas crianças brincavam na relva, emprestando uma nota alegre ao local, com os seus gritinhos e as suas roupinhas claras.
O ar fresco da manhã, banhando-lhe a epiderme, serenou-lhe o espírito.
“A vida. Que coisa estranha é a vida!” murmurou, pondo-se a caminho de casa.
Manchas coloridas e confusas à distância… Eram banhistas. A impressão de cor ficou vibrando frações de minuto em sua retina. Sumiram-se.
Aquele vento impetuoso e lavado que soprava do mar punha-lhe em desordem os cabelos, atiravam-lhe para o ombro a gravata.
Também os seus sentidos se alvoroçavam sob a sugestão de pequenas impressões indefiníveis; epidérmicas e profundas ao mesmo tempo. Ah, a alegria de caminhar assim desembaraçado do terrível peso! Nenhuma reação crítica. Leveza, compreensão, serenidade. Insensivelmente, caminhava depressa, o coração batia-lhe.
Tinha a impressão que aquele instante não se repetiria nunca mais, oh, nunca mais em sua vida; que caminhava entre as estrelas, para o alto, para o infinito, num contato transfigurador com um mundo de que estivera sempre afastado.
E ouviu dentro de si uma voz em surdina, uma voz misteriosa que lhe segredava: “És senhor de todas as possibilidades; olha como a vida é bela e como as horas são frágeis… Oh, vive! Deixa para trás o que foste. Vive, Cesário!”
Na manhã tranquila, o vento impetuoso e lavado que vinha do mar continuava a bater-lhe de cheio no rosto, a assanhar-lhe os cabelos…
1940-41.
Epílogo
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