Xavier Placer
Desde cedo, já se encontrava um bom número de rapazes no Seminário.
Uns andavam à toa pela casa, festejando os recém-chegados com exclamações, abraços: este a pedir notícias ou dando-às, aquele, mais prático, atarefado na conquista de um bom cubículo.
Os curiosos – eram sempre os mesmos – estavam a postos na escadaria principal, assistindo à chegada dos colegas.
– Eh, gente, os cariocas estão aí!
Chegavam outros carros; os seminaristas desciam com alvoroço, havia estrépito de palmas.
– Mas que caras amarrotadas! Parece que passaram uma semana em claro!
Começavam os abraços e as trocas de impressões.
Dizia um rapaz muito branco, sadio, cheio de gestos:
– Puxa, pensei que estas férias não terminassem mais…
– Deixe disso, Alexandre! respondia-lhe Deusdedit.
– É para não dizer o contrário! ajuntava outro. Mas esses cariocas, hein, sempre com as malinhas fatais! Hi, hi, hi…
Um seminarista de cara espantadiça e esperta reunia em torno de si um pequeno grupo:
– Pois é, deixou a batina! Uma “raposa” comeu-o durante as férias. Lá se foi o Mariano…
Boato! disse uma voz.
– Boato? Pois vão ver! exaltava-se o Andrade, tornando-se objeto de atenção geral.
Era um rapaz miúdo, segundo ano de Teologia e minorista, popular entre os colegas por estar sempre a par, ninguém sabia de que jeito, das últimas novidades, tanto internas quanto externas.
Ia haver mudança de um professor do curso? O senhor arcebispo estava escrevendo uma nova carta pastoral? Morrera um bispo no Rio Grande do Sul ou no Ceará? – o Andrade era o primeiro a saber e a espalhar a notícia com detalhes.
– É verdade que Cônego Pedro vai deixar este ano a cadeira de Moral? indagou-lhe João de Deus.
– Vai deixar, não, já deixou! esclareceu o arguto rapaz, muito sério. é cônego Melo o professor de Moral este ano.
– Ô gente, vamos logo cumprimentar Monsenhor Reitor! lembrou Carlos Alberto.
– Não está! informou alguém.
– Só vem à tarde! ajuntou outra voz.
– Mas está aí Monsenhor Henrique! esclareceu Andrade. É ele quem está recebendo.
– Então vamos ao quarto dele! propuseram alguns, subindo a escadaria.
O primeiro entusiasmo esmorecia; as conversas iam tomando novos rumos, formava-se um ou outro grupo, enquanto a maior parte se apressava em entrar para tomar posse dos cubículos.
Cesário achou insuportável todo este alvoroço e, apanhando a maleta, procurou furtar-se a novos encontros.
Mas em vez de cortar caminho pelo pátio, como estava fazendo a maioria, tomou pela galeria interna.
Não havia dado ainda uns vinte passos, quando reparou um vulto à distância, vindo em sentido contrário.
Talvez fosse algum colega, pensou. Não, não era. E olhando melhor: Padre espiritual, bolas! Nem de propósito! Já o viria? Se dobrasse no primeiro corredor? Era ele, lá vinha com o breviário debaixo do braço… Com certeza saíra da capela. Agora não havia outro remédio, tinha que falar com ele, refletiu, diminuindo instintivamente o passo.
Monsenhor Henrique era um homem de estatura pequena, calvo, muito pálido, que se movimentava com a cabeça baixa, num passe lento e miúdo, quase sempre a rezar o seu breviário, que não abandonava nunca. Falava pouco e ninguém o via rindo: era grave, silencioso, e de uma secura no trato que punha qualquer pessoa à distância. Na intimidade notava-se o seu esforço em fazer-se comunicativo: mas a primeira impressão prevalecia e todos lhe tinham um imenso respeito.
No Seminário, alunos e professores faziam grandes elogios às suas virtudes: comentava-se até que Monsenhor usava cilício. Tinha quarenta anos de sacerdócio, quase setenta de idade; fora professor de latim do arcebispo e, dizia-se, renunciara duas vezes o episcopado.
– Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
– Para sempre seja louvado! respondeu o seminarista, fazendo uma pequena vênia e inclinando-se para beijar-lhe a mão.
– Deus o abençoe! Então, passou bem as suas férias, meu filho?
– Mais ou menos, Monsenhor.
– Mais ou menos? Como assim? Porque não foi bem, meu filho?
Cesário tornou-se vermelho e titubeou:
– Sim, Monsenhor, bem…
O padre pousou os olhos demoradamente sobre ele:
– Tem um aspecto abatido, está mais magro… Esteve doente?
– Não, Monsenhor, estive bem.
– Ah, então é da viagem… Antes assim!
– É, deve ser da viagem, Monsenhor… repetiu Cesário, agarrando-se àquela ideia como a uma tábua de salvação. Muitas horas, o senhor sabe, para quem está habituado a uma vida regular… qualquer modificação é logo penosa.
– Realmente, muitas horas… murmurou o padre.
– O senhor passou bem as férias? não é, Monsenhor?
– Como Nosso Senhor é servido, meu filho. Ultimamente têm-me voltado as crises do fígado… não passo lá muito bem. Mas antes que me esqueça, muito obrigado pelo seu telegrama no aniversário de minha ordenação.
Monsenhor fez um movimento de quem se ia afastar.
Cesário inclinou-se para beijar-lhe de novo a mão.
– O senhor vai começar a Teologia este ano, não?
E à resposta afirmativa do seminarista:
– Muito bem! Faça com muito amor o seu curso, ouviu? A Teologia é a ciência por excelência do sacerdote, aproxime-se dela com muito amor… Deus o abençoe!
Separaram-se. Cesário entrou no corredor com um peso no coração. Que conceito Monsenhor faria realmente dele? pensava. Também para que fora passar pela galeria? Procurava simplificar as coisas, e, no final, complicava tudo com as suas singularidades… Se tivesse atravessado o pátio não se teria dado aquele encontro. Monsenhor compreenderia, ao certo, o gênero de suas leituras? Que pensaria se soubesse que ele dera para ler romances? Mas era evidente que os superiores e colegas só podiam imaginá-lo às voltas com essa espécie de literatura… E se soubessem (a esta altura ele próprio não pode deixar de sorrir) e se soubessem que fazia poemas também? Porque não seria como os outros? Porque não se parecia com a maior parte dos colegas – que estudava bem as suas lições, rezava quando devia rezar, e se divertia nas horas de recreio, com simplicidade, com alegria? Porque, meu Deus? Porque, ao lado da vida comum do Seminário, precisara sempre criar um interesse maior? Ou aquilo só vinha acontecendo ultimamente?
Não sabia. Não queria saber. Sentia que estava tocando em alguma coisa muito grave, e procurou não se deter naquele pensamento. A observação porém, que o encontro com Monsenhor Henrique cristalizava de repente, e pela primeira vez, em seu espírito, continuou a persegui-lo:
Porque ao lado da vida comum do Seminário, precisara sempre criar um interesse maior?
Havia um grande ajuntamento de recém-chegados no cubículo do deão.
E “Padre” Angelo (tratavam assim aos alunos, sub-diáconos e diáconos, no último ano do curso) desdobrava-se em atividade.
Alguns seminaristas estavam descontentes com a distribuição dos cubículos e reclamavam.
“Padre” Angelo explicava com paciência, as razões por que agira desta ou daquela maneira; lembrava a um o hábito de não parar no cubículo e, daí, o motivo de querer tê-lo a seu lado; a outro, as conversas pela janela com o vizinho, etc.
Mas como havia concedido a troca a um deles, os descontentes apoiavam-se nisso e insistiam.
Ele acabou zangando-se, pôs todos para fora, fechou a porta e, pregando no corredor a relação de nomes com os respectivos cubículos, falava:
– Os senhores já começam o ano muito mal. Não pensem que este ano vão encontrar o mesmo “Padre” Angelo do ano passado; estão muito enganados! Este ano vão me conhecer! Não se pode ser amigo dos senhores, parecem crianças! Tolero tudo, menos o abuso… – e saiu mal humorado, pisando forte pelo corredor.
Foi nesse momento que Cesário se aproximou.
O ajuntamento ia-se desfazendo; só dois seminaristas haviam ficado diante da lista à parede. A ordem alfabética facilitava o encontro dos nomes. Estava lá: Cesário Valverde, segundo andar, cubículo 9. Apanhou a maleta que pousara no chão e, seguindo até o fundo do corredor, ganhou rapidamente a escada.
Depois de tantas impressões, sentia agora uma necessidade urgente, imperiosa, de estar só, de recolher-se em si, de não ver ninguém, de não ouvir nada, a não ser o seu apreensivo coração.
– Felizardo, hein, pegou um dos melhores cubículos!
– Olá, Amintas! Cumprimentou-o Cesário, sem se deter e com certo espanto.
“Ué! este camarada está de volta ao Seminário?” pensou ele. “Confiou-me no fim do ano passado, quando o sr. arcebispo o deixou sem tonsura, que não voltaria…”
– Depois quero falar com você, está ouvindo, Cesário? disse Amintas, descendo aos pulos a escada. Quero ver se ainda almoço hoje em casa! Só volto à tarde, seu bobo!
O cubículo número 9 ficava à direita – o último no extremo do corredor. Ao contrário dos outros, tinha duas janelas: uma para a banda dos eucaliptos, outra para o pátio.
Eram as pequenas vantagens que os colegas disputavam com “Padre” Angelo.
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