Xavier Placer
Eram dez horas da manhã e uma garoa fina peneirava sobre a cidade, quando no outro, o trem entrou resfolegando na Estação do Norte.
Pouco depois, grupos de seminaristas de maletas na mão, aspecto cansado, empoeirados, contratavam táxis que os iriam deixar à porta do Seminário.
– Você vai com a gente, Cesário! gritou uma voz.
– Você vai com a gente, está ouvindo, Cesário? Ó Cesário! insistia a mesma pessoa.
Desembaraçou-se a custo do aperto dos passageiros que desciam dos carros, e deu com Carlos Alberto, que ele já adivinhara pela voz.
– Está bem. Mas não faça tanto escândalo, Carlos Alberto! Quem são os outros?
– Um é Josias, arranjei também Deusdedit, mas ainda se pode convidar um outro… São cinco lugares!
E voltando-se todo nervoso para o colega:
– Depressa, Cesário, que o homenzinho está lá à espera com o pessoal… Dê-me sua maleta!
Nesse momento João de Deus passou por eles com o seu passo miudinho, muito afobado, muito vermelho:
– Oh, que cabeça de vento! Valha-me Nossa Senhora! Esqueci…
– Quer ir com a gente? gritou-lhe Carlos Alberto, tentando detê-lo pelo braço.
– Vou, vou! Me esperem então! Esqueci meu bonezinho de viagem no trem… Me espere! e sumiu-se pelos vagões.
Não demorou em aparecer. Os quatro já estavam acomodados e o carro partiu.
– Até que enfim, eis-nos chegados a São Paulo! Puxa, que esta viagem até me pareceu mais demorada do que a do ano passado! entrou a falar Josias, um seminarista já no último ano do curso, mas cuja recepção de “ordens” o arcebispo vinha protelando por qualquer motivo que ninguém tirava a limpo. As palavras dele ficaram sem resposta. Estavam todos tão cansados daquela noite em claro, que cada um se deixava afundar em seu lugar.
– Que nada! disse depois de muito tempo Carlos Alberto. Levou as mesmas horas! É sempre assim… Para o ano você terá a mesma impressão!
– Para o ano ele já não está mais aqui…
murmurou João de Deus, o do bonezinho, um minorista sempre muito exato e minucioso em tudo.
– Será que já tem muita gente no Seminário a estas horas? arriscou Deusdedit, como se não se estivesse dirigindo a ninguém. É capaz de os cariocas serem os primeiros a chegar! acrescentou.
A voz de Josias fez-se ouvir de novo:
– Eu, se fosse paulista, só aparecia no Seminário quando faltassem quinze minutos para terminar a hora da entrada!
– Isso se você morasse na capital… Se morasse em Ribeirão Preto, ou Santos, como o Andrade… observou de novo João de Deus.
Josias viajava ao lado do chofer. Voltou-se para trás, para o colega que acabara de falar:
– Você está aí, João de Deus?
Houve um riso frouxo, que não se comunicou.
Mas Josias para Cesário:
– Então Mario e Gabriel ficaram-se, hein, poeta?
– É verdade, Josias, murmurou Cesário, que viera até ali observando em silêncio as frases dos colegas.
E aquela lembrança trazia-lhe agora à memória os amigos, Tilda, a mãe, e, sem ele esperar a mancha azul recortou-se irrequieta e viva na sua imaginação…
O carro avançava rápido, disparando pela estrada asfaltada e deserta, às margens do Tamanduateí, enquanto um ou outro dirigia perguntas sem importância ao chofer. Ao lado deste, Josias empenhava-se em saber quantos quilômetros por hora fazia aquele carro, se estava adaptado para álcool, e quanto poderia custar à vista e a prazo um automóvel marca tal, modelo tal…
O chofer, um homem muito corado, de olhos miúdos e farto bigode, parecia sobremodo honrado com as perguntas que lhe eram dirigidas e, sem desviar a atenção do volante, dava as informações numa linguagem arrevesada de calabrês.
– Já estou avistando daqui o Seminário, não acreditam? falou pouco depois Carlos Alberto.
– Impossível! retrucou João de Deus.
– Impossível? Pois então olhe lá, olhem lá! e pôs-se a apontar para longe.
De fato. O carro corria e cada vez se distinguia melhor a grande massa alvacenta dos pavilhões entre o verde da paisagem em torno.
Sentado ao lado de Deusdedit, na parte de trás, Cesário continuava ouvindo, sem interesse, o bate-boca dos colegas truncado pelas palavras que o vento levava.
E, com indiferença, contemplava a água barrenta e histórica do Tamanduateí, pensando:
“É ali o Seminário. É ali que eu tenho que passar um novo ano, quatro anos ainda… Quatro anos! 1931… 32… 33… 34… 1934! Chegarei lá? Quanta coisa pode acontecer durante esse tempo, quanta coisa!”
O carro dobrou veloz o monumento do Ipiranga.
Agora se distinguiam perfeitamente os detalhes do edifício; as janelas verdes, numerosas, com pessoas em algumas delas e, ao fundo, contra o céu de chumbo, o renque alto dos eucaliptos…
– Estou vendo daqui cônego Pedro na primeira, segunda, quinta janela à esquerda! disse João de Deus. Olhem lá!
– Na quinta? perguntou ingenuamente Josias. Os pegaram a rir.
– Ele é quem está esperando o João de Deus para tomar-lhe aquela tese de Moral do ano passado! disse Deusdedit. E pôs-se a imitar a fala cansada do velho cônego professor: Audiamus igitur dominum Joannem…
– Desse estou eu livre! respondeu João de Deus. Não sabe que o professor de Moral este ano vai ser Cônego Melo?
– Será? É boato! falaram dois ou três ao mesmo tempo.
– Boato? Pois vocês vão ver! comentou João de Deus.
– Prefiro cônego Pedro! disse Cesário, que se surpreendera com a notícia. Será certo isso? Vai ver que não passa mesmo de boato!
– Está com medo de Cônego Melo em Moral, hein Cesário! gracejou Carlos Alberto.
Cesário sorriu.
– Dizem que ele é profundo em Moral! Mais profundo mesmo do que Padre Tobias em Filosofia, continuou Carlos Alberto.
– Não sei de onde Padre Tobias tira tanta fama de profundo em Filosofia! Alguém já lhe viu alguma aula ou qualquer trabalho sobre Filosofia? Eu estou ainda para saber! secundou Josias.
Cesário endireitou-se em seu lugar, disposto a tomar a defesa de Padre.
– Oh, Josias, falou Deusdedit, não se esqueça das conferências dele no ano passado sobre Ação Católica. Os temas de que ele tratou foram vistos de um ponto de vista filosófico, você não acha, Cesário?
– Depois, os conhecimentos de Padre Tobias em Filosofia não são de ordem didática, respondeu Cesário com impaciência. Vocês parecem que pensam que Filosofia é essa matéria aborrecida que a gente estudou durante dois anos…
– Não, meus senhores. Filosofia é o institucionismo de Bergson e esse tal de Proust de quem nos enche os ouvidos o Cesário, estão ouvindo? disse com sarcasmo Josias, que vira sempre com certa prevenção a amizade de Cesário com Padre Tobias. Tomem nota disso! Aquilo é que é Filosofia!
“Institucionismo de Bergson”, murmurou, com um sorriso irônico, Cesário. Mas conservou-se calado. Como responder-lhe, como dar-lhe atenção, se dentro de si, à medida que o carro se aproximava do Seminário, crescia aquela angustiosa sensação de isolamento?
Os dias iguais, uns atrás dos outros, as semanas iguais aos dias, os meses iguais às semanas, o encerramento, afinal, do ano letivo, com a proclamação solene do resultado dos exames… como era odioso ficar de pé, sob o olhar em peso da comunidade, quando pronunciavam o nome da pessoa, para a leitura das notas! Depois, o aperto de mão de Monsenhor reitor, as palmas invariáveis dos colegas… Tudo isto perpassava em sua memória em imagens confusas e rápidas, misturando-se a impressões do momento, para se fundir num único sentimento – o desamparo, o terrível desamparo interior.
Olhava o edifício do Seminário… Como aquelas paredes brancas envolvidas na atmosfera cor de chumbo da manhã, lhe pareciam rebarbativas!
Era também assim, pensava, que ele se sentia interiormente: uma paisagem fria, coberta de cactus, com uma espessa neblina a pesar desoladamente sobre as pedras, sobre o seu desânimo.
Estava ali, de volta. Era a realidade brutal, a realidade. E pensar que nos anos anteriores não voltara assim…
Mas não tinha ânimo para ir mais longe, para reagir. A lembrança dos propósitos que se fizera passava-lhe pela cabeça como uma coisa remota, indiferente, alheia a si próprio.
Sentia-se intelectualmente embrutecido, espesso, incapaz de projetar projetar luz sobre o próprio abatimento. Abandonava-se com indiferença a ele. Deixava-se levar. Sim, que os acontecimentos o arrastassem para onde quisessem, tudo lhe era indiferente! que o arrastassem… Mas no fundo, que vontade terrível de chorar.
O carro transpôs buzinando um largo portão de ferro.
No alto estava escrito:
SEMINÁRIO MAIOR DE NOSSA
SENHORA DA CONCEIÇÃO.
VIII
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