Xavier Placer
Cesário guardou a carta, deixando-se ficar em silêncio.
Observou de relance o amigo e compreendeu que se estava passando com Gabriel a mesma coisa. Para que falar ? dizia a atitude do amigo. Sim, para que falar, sentia Cesário, se a “presença” de Padre Tobias enchia perfeitamente o silêncio de ambos?
Foi Gabriel quem quebrou, afinal, aquele encanto:
– Padre Tobias é uma grande alma, não é verdade ? disse ele, com um acento de ardente simpatia, fixando o amigo nos olhos.
– Você diz bem, uma grande alma!
Nesse momento um senhor gordo, cabelos grisalhos em desordem e óculos grossos de tartaruga, entrou falando alto no carro, acompanhado de uma senhora de seus trinta e poucos anos, mais uma mocinha de azul, lembrando, pelo aspecto, a senhora no tempo em que teria uns dezessete anos.
– É aqui, só pode ser aqui! respondia de mau humor a senhora.
– Calma, Dulce, vamos ver! Você perde logo a paciência, parece um fim de mundo, há de se encontrar… retrucava-lhe, mordendo os lábios, o homem gordo, ao mesmo tempo que procurava os lugares com o número das poltronas na mão.
– Encontrei, papai! exclamou a mocinha, debruçada nas costas de uma poltrona.
A senhora e o homem gordo aproximaram-se.
– Oh, não! Pensei que era 43 é 48… Não é aqui, não… Mas o senhor tem certeza de que é neste carro ? Veja a letra!
Cesário voltou-se para trás, num movimento espontâneo de curiosidade, e uma observação muito natural desenhou-se a seus olhos: “Uma mocinha de azul”.
– Quer ver que são estes os lugares, disse Gabriel, inclinando-se na poltrona para examinar o número.
Dirigiu-se baixo ao pai de Cesário:
– Ela disse 43, não ?
– Sim. Esta aqui é 41 e ao lado 42…
– Então a minha é 43, a do Cesário 44… é aqui!
Mãe e filha haviam ficado indecisas no meio do carro. O senhor gordo aproximara-se deles.
– Talvez sejam estas as poltronas que o senhor procura, não ? indagou o pai de Cesário.
– Exatamente, são essas… Mas veja o senhor: não se distinguem os números, é uma maçada, já corri quase que todos os carros… Uff!
E estendendo-lhe os papeizinhos brancos:
– Veja só: isto é um 3 ou um 8? Tem que se adivinhar! E as letras dos carros. Sabe-se lá se é um F ou um E? Abanou a cabeça, passando o lenço no rosto, que transpirava e deixou cair na poltrona a massa pesada do corpo, enxugando-se sempre, abrindo o paletó e ofegando forte.
Tendo deixado os lugares, o amigo e o pai dispunham-se a sair. Cesário propôs acompanhá-los.
– Talvez não seja conveniente você sair; está quase na hora da partida e depois é uma atrapalhada… disse Gabriel. Nós ficamos do lado de fora, à janela.
A família do senhor gordo começou a acomodar-se.
– Veste o casaco, Leda, que vai fazer frio! falou a senhora, enquanto ao lado de Cesário o marido afrouxava a gravata, abanando-se com um jornal.
– Agora não, mamãe. Mais tarde… contestava-lhe a mocinha, agitando o cabelo.
Chama-se Leda, ela ! pensou Cesário, involuntariamente. Leda era latino aquele nome e, se não se enganava, queria dizer risonho, alegre… Bonito nome!
O amigo e o pai estavam agora à janela. Ele debruçou-se para fora.
Ouviu-se nesse momento o primeiro sinal de partida.
– Então, daqui a umas três semanas vocês estão no Seminário, não é ? falou Cesário.
– Mais ou menos… E talvez escreva para você antes da recepção do “diaconato”, ouviu, Cesário ?
– É, escreva, porque depois vem o retiro, hein ?
Entre a mocinha de azul e a senhora estabelecera-se uma conversação cochichada; aos ouvidos de Cesário chegavam fragmentos de frases, que lhe desviavam, sem o querer, a atenção.
– Que dizia você, Gabriel ? Quantos dias ?
– Para o “diaconato” é uma semana…
– Já sabem quem vai pregá-lo ?
– Dom Moura falou que podíamos aproveitar o retiro do clero, que vai ser agora em começos de março… Nesse caso iremos fazê-lo no Seminário Menor…
– Bom, seja como for, não deixe de me escrever, ouviu ?
– Se eu não escrever para você, você me escreve.
– Não, você é que vai escrever para mim. Fica combinado assim.
E tomando um ar pensativo:
– Como vai ser monótono esta viagem sem vocês! Depois os primeiros dias, as semanas no Seminário, enquanto não chegarem…
Gabriel ia responder-lhe, mas a esta altura ouviram distintamente:
– Psiu! Psiu! Gabriel!
Eram dois colegas que o chamavam da plataforma do carro vizinho. O amigo afastou-se, enquanto ele ficava a conversar com o pai.
Na gare a azáfama era cada vez maior.
Aproximava-se o sinal da partida. A locomotiva fumegava, desprendendo um chiado surdo; os vagões entrechocavam-se rangendo. Afinal o barulho estridente da sineta fez-se ouvir impondo-se sobre o burburinho. Era o último sinal.
Gabriel estava de volta.
– Desculpe, Cesário, pensei que eles não me largassem mais…
– Que queriam ?
– Nada, aí é que está. Imagine que discutiam sobre a Reforma Protestante e queriam minha opinião…
O tempo urgia. Cesário curvou-se para fora, abraçou rápido o pai, em seguida o amigo (reparou que a mocinha de azul se debruçara à janela e que, olhando para a gare, o que fazia era observá-los) terminando por cumprimentar Gabriel pela próxima recepção do “diaconato”.
– Obrigado! Obrigado! Lembranças a Padre Tobias, não esqueça!
– Então conto com sua carta, hein!
– Sim, sim… respondeu Gabriel. Mas quem sabe se ainda não teremos grandes novidades até lá…
A sineta cessara de tocar. O trem punha-se em movimento lentamente.
– Que quer dizer isso, Gabriel ?
– Nada, nada… Tolice! Você quer levar este livro para se distrair em viagem ?
– Não, deixe! Um abraço para o Mário, está ouvindo ?
Gabriel fazia que sim com a cabeça; o pai acenava-lhe.
Adeus! Adeus! dizia Cesário à janela. Iam ficando. A velocidade da marcha aumentava cada vez mais. Iam ficando. Lenços, rostos, chapéus, outros rostos, um braço feminino, uma criança ao colo de uma senhora de lornhão, lenços. Os dois rostos conhecidos haviam-se confundido na massa. Só lenços… Foi a última impressão que lhe ficou: manchas brancas se agitando à distância…
Sentou-se e, pousando a cabeça entre as mãos, ficou imóvel, olhos fechados, sem um pensamento.
Que quereria dizer aquilo do amigo: “Talvez ainda tenhamos grandes novidades até lá” ?
Gabriel parecera-lhe realmente meio misterioso. Ele não era assim! Ao contrário. Era até tão comunicativo, tão franco sempre, pelo menos com ele… Que seria ? Quem sabe se a advertência ao sentimentalismo dele não a dirigia mais a si próprio. Gabriel, do que a ele? Alguma coisa se agitava em seu espírito, isso não havia dúvida. O que seria ? Receio do “diaconato” ? Não, não poderia ser isso. Mas… se fosse ?
Para não pensar naquilo pôs-se a observar o vai-e-vem, ruidoso dos colegas de um carro para outro; esforçava-se em seguida por distrair-se, olhando os detalhes do panorama noturno -- uma praça de subúrbio, um bonde passando numa rua comprida, lá no alto, destacando-se no céu escuro, como se estivesse suspensa no espaço a imagem luminosa do Cristo.
Voltava a reparar nos passageiros: “a mocinha de azul está comendo agora uma fruta! bem, bem, que tenho eu com a mocinha de azul ? deixá-la!”
E o seu pensamento voltava a debater-se em torno de Gabriel, de sua frase enigmática.
Estavam de viagem cerca de quarenta seminaristas. Mas naquele carro iam poucos.
Seis ou sete poltronas adiante, alguns conversavam com entusiasmo.
Deusdedit, um colega do mesmo ano que ele, pusera-se de pé e chamava-o para o grupo com insistência.
Cesário levantou-se e foi ter com eles.
– Oh Machado! (Deusdedit só o chamava assim) Você está lá sozinho, que pena! Se tivesse comprado a passagem junto com a gente…
– Não, estou bem. Não faz mal!
– Agora não há outro remédio, é claro!
– É, está bem. Está até muito bem… comentou um seminarista de cabelos eriçados, pequeno e irrequieto como um símio.
Alguns riram com ele, compreendendo logo a alusão maliciosa. Cesário ficou um momento indeciso, sem saber do que se tratava.
– Esse Brandão! disse João de Deus, abanando a cabeça apreensivamente, não sem deixar escapar também o seu risinho. Decerto havia ali qualquer coisa de conhecimento de todos, que deveria ter sido comentado pouco antes, sentiu Cesário.
– O que é, Deusdedit ?
– Nada, você vai atrás do Brandão… Tolice! E falando-lhe baixo ao ouvido:
– Pegaram a botar maldade na presença daquela mocinha perto de você.
– Você é tolo, Brandão! Se quer ir para lá, vá! disse Cesário, voltando-se de mau humor para o colega.
– Eu não, pra “raposa” me comer ? Eu não! – pilheriou alto o rapaz, que se acreditava muito engraçado e não perdia ocasião de pôr em evidência os seus dotes cômicos.
Houve novas risadas. Alguns desaprovavam aquilo.
– Ó Brandão! você está num trem…
Cesário tornou a seu lugar, sem dizer palavra. Abatia-o uma sensação de isolamento, de vazio, de inutilidade de tudo. Desejava naquele momento qualquer coisa que ele próprio não sabia dizer o que era…
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