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“Meu caro Cesário,

    Você não imagina como é agradável para mim a hora em que uma vez de longe chega à minha Tebaida cantando aquilo mesmo que eu queria ouvir.

     Não há como o silêncio para realçar as melodias.  Também não há como ele para revelar a vacuidade dos sons. Fique, pois, alegre por ter a sua carta (aliás, só ontem me chegou às mãos) resistido a este cadinho terrível. Muito obrigado!”

“... Diga-me uma coisa, meu amigo: é fato que sempre vai fazer o curso de Teologia no Seminário de Belo Horizonte ? Apresso-me em em perguntar-lhe por isto: chegando ontem (22 de fevereiro) do Sul, onde estive com os “meus” pela primeira vez depois que tomei a batina, foi essa uma das novidades que encontrei no Seminário”

… “Achei isto esquisito, e não o levei muito em conta, tanto mais que sua carta nada dizia a respeito.

   Mas hoje, conversando com uns colegas seus daqui de São Paulo, que aparecem de vez em quando em visita ao Seminário, vi o boato confirmado.

   Ignoro as razões (acredito que só possam ser justas) que levam o meu amigo a Belo Horizonte. Em todo caso, confesso...

… “Em todo o caso, confesso, já estou sentindo esta possível separação. E isto porque, levando-se em conta o nosso convívio de vários anos e certas afinidades que nos aproximam, eu me habituara a ser para você (como o sou igualmente para alguns outros) uma espécie de irmão mais velho.

    Quero dizer, todas as vezes que pensava no meu caro amigo, era com essa ternura de parente espiritual que eu o via. Eis que com sua ida para Belo Horizonte tudo isto torna de súbito um rumo imprevisto…

    Não se admire do que lhe vou dizer, mas você, meu caro Cesário -- um dia, quando se conhecer melhor, compreenderá o que isto significa  -- você, a certos respeitos, é uma natureza privilegiada. Sorri ?  Julga que o estou a lisongear ? Eu me explico.

    Pessoas com essa sua simplicidade tão fácil (primeira condição espiritual do estudioso); com a sua grande capacidade de refinamento do caráter e da sociabilidade; com a sua finura de espírito (que o leva, como tive ocasião e observar muitas vezes, a surpreender magistralmente o humano nas ações dos homens); com a sua perspectiva superior, nos juízos, sempre em intensificação (e isto é o que constitui o homem sábio); e com o seu fundo de piedade autêntica que vai se delineando, certamente

… “Em todo o caso, confesso, já estou sentindo esta possível separação. E isto porque, levando-se em conta o nosso convívio de vários anos e certas afinidades que nos aproximam, eu me habituara a ser para você (como o sou igualmente para alguns outros) uma espécie de irmão mais velho.

    Quero dizer, todas as vezes que pensava no meu caro amigo, era com essa ternura de parente espiritual que eu o via. Eis que com sua ida para Belo Horizonte tudo isto torna de súbito um rumo imprevisto…

    Não se admire do que lhe vou dizer, mas você, meu caro Cesário -- um dia, quando se conhecer melhor, compreenderá o que isto significa  -- você, a certos respeitos, é uma natureza privilegiada. Sorri ?  Julga que o estou a lisonjear ? Eu me explico.

    Pessoas com essa sua simplicidade tão fácil (primeira condição espiritual do estudioso); com a sua grande capacidade de refinamento do caráter e da sociabilidade; com a sua finura de espírito (que o leva, como tive ocasião de observar muitas vezes, a surpreender magistralmente o humano nas ações dos homens); com a sua perspectiva superior, nos juízos, sempre em intensificação (e isto é o que constitui o homem sábio); e com o seu fundo de piedade autêntica que vai se delineando, certamente, na proporção daquela fecundidade interior, que é a sua marca propriamente dita; sobre tudo isto; o seu passado bastante sofrido (observei sempre isto na sua maneira de ser); pessoas assim, meu ótimo Cesário, não se encontram em grande número…

    Isto, aliás, não é motivo para você se envaidecer. Ao contrário. Tema sempre esse sinal de eleição, essa marca misteriosa da Graça em você, e não queira nunca fugir ao destino do depositário da chama divina… Mas isto já é outro assunto.

    Voltando ao nosso caso: qualquer rumo que você tomar, meu caro Cesário. é preciso que continuemos amigos, ouviu ? De minha parte asseguro a você que continuarei mesmo de longe a estimá-lo como até aqui o estimei.

    Você, que talvez não me conheça bastante, achará que eu estou sendo, ou mesmo que eu sou, um romântico feroz, que exagerei um sentimento ou que faço mortificação chamando-o tantas vezes de “meu caro Cesário”.

    Eu, porém, que me conheço melhor, que chamo irmão a todos os que, apesar de tudo; lutam por realizar a Ideia de onde foram tirados; eu, que me interesso loucamente pelas questões humanas, e que me entristeço por não poder conhecer e amar individualmente toda a criatura que vive sob o signo da Ordem e da Beleza, toda a criatura “bonae voluntatis” que se agita e sofre, acho que não exagero, acho que este abraço de hoje não tem a unção que eu desejara.

     Bem adeus.

    E que nos momentos em que o meu caro Cesário se sentir sozinho (porque há desses momentos, para que mentir ?) a Eucaristia lhe lembre estar você vivendo numa comunidade. A Eucaristia! Se os homens meditassem na imensa dádiva que é esse sacramento… “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” e não satisfeito com essa prova de Amor, dá-se em alimento às nossas almas!

    Misteriosa, incompreensível dádiva! Ah meu caro amigo, não estranhe insistir eu invariavelmente e sempre nessa tecla. No dia em que você superar o simples “aprendizado” da ascética cristã e chegar àquela parte da vida espiritual que os Teólogos chamam de vida unitiva, você tocará no fundo do segredo da fé e então compreenderá como São Paulo o grande São Paulo pode exclamar: “vivo, jam non ego, vivit vero in me Christus”.

    Adeus, recomendações ao pessoal. Como vão o Mário, Gabriel e esses preguiçosos todos que não me escrevem ?

      O seu em Cristo,

                                     Padre Tobias de Almeida.

   

Cesário atirou a maleta à prateleira do carro, pousou em cima o chapéu e começou a dobrar maquinalmente o capote.

           Enquanto isso pai e o amigo haviam-se se sentado e conversavam em voz baixa.

        É às sete que parte o trem, não é ? perguntava Gabriel consultando o relógio de pulso.

            – Sim. às sete horas, dizia o pai. 

            Ah, ainda há muito tempo…

             Meia hora; não são seis e meia ?

            Seis e vinte, respondia Gabriel, tornando a olhar o relógio.

           Ia ouvindo aquele diálogo sem interesse e, como o seu lugar era o fundo do carro, observava dali em silêncio o movimento dos passageiros.

          À direita via um grupo de colegas já instalados em seus lugares a conversar calmamente com os parentes; uns passavam cumprimentando com um sorriso ou um aceno discreto, outros saiam falando alto e esbarrando em pessoas atravancadas de embrulhos que surgiam inesperadamente; mil necessidades humanas entrando pelas janelas com recomendações e pedidos gritados, discussões por causa de lugares ocupados por engano, um movimento confuso, de atordoar…

         Com  que  tédio  contemplava  agora,  todo este alvoroço! Pouco antes, ainda sentira vontade de conversar, ainda se entusiasmara com a presença de Gabriel. Mal tornara à gare, porém, fora aquilo. A realidade da viagem revelara-se de súbito, brutalmente.

         Sentou-se afinal e deixou-se ficar, os braços caídos, olhando com indiferença para tudo.

      Está sentindo alguma coisa, Cesário ? indagou o pai que o observava.

          Não, nada… É o alvoroço que atordoa a gente, quando não se está habituado. Não tenho nada.

           Gabriel sorriu.

      Compreenderia ele o motivo real ? conjecturou Cesário. Talvez compreendesse; conhecia-o tanto… E sorriu para o amigo, um sorriso frouxo, sem vontade.

           Gabriel atirou-lhe às mãos a brochura que trazia.

         Conhece esse estudo sobre Proust, Cesário ? Apanhou o livro, pondo-se a folheá-lo, mais em atenção ao amigo do que por curiosidade ou interesse.

           É muito interessante.  “Inteligente,  sobretudo;  ainda não passei dos primeiros capítulos, mas estou gostando. Cesário devolveu o livro ao colega com um “é”... Que lhe importava Proust ou quem quer que fosse naquele momento ?

         Tinha que viajar sem eles isso é que era importante! Importante mas irremediável… Como seria monótona aquela viagem! E os primeiros dias no Seminário, enquanto eles não chegassem… Se já não estivesse ali com a passagem comprada, não iria. Não iria mesmo, repetia a si próprio para se convencer daquela mentira. Pediria a dom Moura para ficar e o sr arcebispo não deixaria de atender. Mas que motivo lhe apresentaria ? Muito fácil. Nenhum motivo. Diria simplesmente que era para assistir à recepção das “ordens” dos dois amigos… E dom Moura deixaria ? Era bem possível. Deixaria, sim, porque não ? (ele estava acreditando justamente no contrário). E se dom Moura lhe perguntasse: “Mas somente  para assistir às “ordens” de Gabriel e Mário Dias, porque?, que responderia ele ? “Sim, sr. arcebispo, só para isso; eu sou muito amigo deles.” Dom Moura daria então uma boa risada e diria: Está bem, pode ficar; avise cônego Antonio (era o secretário do arcebispo) para incluir seu nome no telegrama a Monsenhor-reitor”.

        Que é que você está pensando, Cesário ? perguntou Gabriel quebrando de súbito o vazio que se havia feito entre os três.

        Aquela pergunta despertou-o de seu devaneio. Que ingenuidade! Sempre a sua maldita imaginação arrastando-o para aquelas tolices. Oh, mas que tolice estivera pensando! e passou a mão pelos cabelos alvoroçados como se com aquele gesto varresse da imaginação o acervo de tolices.

            Nada, respondeu ele ao amigo. Nada!

           Pode esperar carta minha assim que chegar ao Seminário, ouviu Cesário ? continuou Gabriel.

            Ah, é verdade, havia-me esquecido! Tenho aqui uma carta.

         Meteu a mão no bolso fundo da batina, e tirou a carta, que passou ao amigo.

            Acho que é de Padre Tobias…

            Nas, você ainda não a abriu ?

            Ainda  não.  Mas  pode  abri-la  você.  Sente-se  aqui a meu lado para lermos juntos!

          Gabriel levantou-se da poltrona em frente de Cesário, sentando-se à sua direita.

           O outro desdobrava a carta. Puseram-se a ler em silêncio:

           – Eu li essa carta a que Padre Tobias se refere ? indagou Gabriel.

            Leu, sim.

            Não me lembro.

           Voltaram às palavras do padre:

           – Ué, que quer dizer isto ? Você está compreendendo, Gabriel ?

            Espere, vamos ver.

           E pôs-se a ler alto o que seguia:

         Espere, Gabriel.  Esta história está um tanto curiosa, hein, que parece a você ?

          Já sei do que se trata, Cesário. Quer saber quem afinal arranjou todo esse mal-entendido ?

           Ficou olhando para o amigo com curiosidade.

            Fui eu.

            Você ?

            Não se lembra… Ora, está aí, não podia ser outra coisa. Você se lembra de uma tarde, nestas férias,  em que  nos encontramos  no Palácio ?

            Encontramo-nos tantas vezes.

        – Bem, mas em janeiro, por aí… Lembre-se que até estavam em visita ao sr arcebispo uns seminaristas de Belo Horizonte, por quem você se interessou muito…

            Sim, agora me recordo.

        Pois bem, vai ver que foi isto: eu respondi no dia seguinte a uma carta do Andrade e, não me lembro mais a propósito de que pergunta fazia ele a seu respeito, dei-lhe notícias suas, contando que você se interessara muito pelos seminaristas de Belo Horizonte, indagara coisas do Seminário deles, etc. Sem dúvida foi daí que surgiu o equívoco…

            É possível, murmurou Cesário.

           E depois de curto silêncio:

          Mas  que  gente  imprudente, também! Pois quero tirar a limpo essa história assim que chegar ao Seminário.

       Ora, Cesário, tolice. Se a gente vai dar importância a essas ninharias…

       Mas  se fosse grave teria espalhado do mesmo jeito, bolas! exclamou Cesário, exaltando-se bruscamente.

            Com essa lógica…

         Não é isso, Gabriel. Que diacho um Seminário Maior não é um colégio de meninos… Esse Andrade é inconsequente!

      Vamos ver o resto da carta, disse Gabriel, esforçando-se por disfarçar em presença do pai do amigo.

          Continuaram a leitura, agora cada um para si. Dizia Padre Tobias:

 

 

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