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 06/32

   

Ajeitava  a um canto da maleta um pequeno embrulho rosa, quando a irmã apareceu à porta do quarto. Não entrou.

           – Chegou agorinha mesmo pelo correio da tarde, Maninho! – disse ela, estendendo-lhe um envelope azul.

         – Para mim, é?  Talvez  seja  do... Oh, não,  pela letra parece de Padre Tobias, exclamou o rapaz, examinando a carta com um vivo movimento de curiosidade.

            A moça ficara observando o irmão, um sorriso sutil nos lábios.

            – É dele, sim, de Padre Tobias, acrescentou o seminarista.

          Ia  abri-la  mas  conteve-se.  Não leria depois – pensou. Passara umas férias tão dissipadas... Era preciso ir fazendo essas pequeninas mortificações. E atirou a carta sobre a mesa.

         – Ué, não vai vê-la, Maninho ?  perguntou a moça, num impulso incontido de surpresa.

           – Não, tem tempo, leio depois... – apressou-se em justificar, como se acabasse de ver descoberto ali o seu gesto íntimo.

         – Oh!  mas  que  calma!  Francamente, não compreendo que se possa ser tão...

          Deixou a frase em suspenso; mas ele que não esperava por esta observação, atrapalhou-se:

           – Não, eu vou ler... É de Padre Tobias. Mas agora estou ocupado, é por isso...

            A irmã teve um leve sorriso, que lhe pareceu irônico, mas guardou silêncio.

            Ele fora até a janela, correndo a cortina, enquanto para disfarçar o embaraço:

            –  É desagradável esta claridade crua da tarde, não é, Tilda ?

        Isto  se  passou  rápido;  de costas, adivinhara-lhe o sorriso e pensou: "É claro que ela não pode compreender. Nem desconfia o motivo. Toma talvez por uma esquisitice. Mas assim é que é bom, que sorria. Que distância nos separa do mundo! Uma coisa tão sem importância, no entanto..."

            – Não esqueça a sobrepeliz, hein! arriscou Matilde, vendo o irmão debruçar-se sobre a cama, na arrumação da roupa.

      O seminarista  apontou  para  um  embrulho femininamente preparado.

             – Olhe aqui! Estava guardando-a quando você apareceu.

           A moça lançou um olhar interessado sobre o objeto (a sobrepeliz que bordara para o irmão naquelas férias), mas compreendendo que devia deixá-lo a sós, retirou-se, avisando:

             – Seu jantar talvez não demore, ouviu, Maninho ?

         Como a irmã se estava tornando mulher, pensou o seminarista, acompanhando-a com o olhar ao sair. Não demoraria, por certo, em casar... Já ouvira mesmo vagos comentários naquelas férias a respeito do noivado... Deveria estar para breve.

          E  a  imaginação  (aquela imaginação absurda que tanto o fazia sofrer) mostrou-lhe a irmã já casada, mãe... provocando-lhe uma instintiva pelo seu futuro marido, um rapaz de maneiras delicadas, com quem tivera ocasião de falar uma ou duas vezes apenas.

        Mas  que absurdo, meu Deus, que injustiça! murmurou ao ter consciência disto. Porque aquela sua aversão a coisas tão naturais, tão humanas ? Não era o caminho normal da natureza ? Ou seria tão egoísta que pretendesse... Não, não. Tudo aquilo era muito natural; a sua aversão é que era anormal.  Tilda freira, que estupidez da sua imaginação !

         A voz da mãe, chamando-a de dentro para o jantar, cortou-lhe bruscamente o fio destes pensamentos.

           Fechou a maleta, apanhou o capote, e abotoava-o ainda quando entrou na sala.

          Matilde estava bordando a um canto uma grande toalha branca, que a envolvia toda, e a mãe sentara-se, em silêncio, junto dela.

           Aproximou-se da mesa, fez uma ligeira oração antes da refeição (enquanto rezava, sentiu que ambas haviam baixado a cabeça) e sentou-se.

             – Oh, não me lembrei de mandar preparar... disse a mãe, vendo-o servir-se.

              Ele não chegou a perceber de que se tratava, mas respondeu:

              – Não, não precisa.

              E como a mãe se apressasse a deixar a sala:

             – Não é preciso, não quero, ajuntou, contendo um movimento de impaciência.

        A irmã, que observava calada a cena, falou para desfazer a impressão:

              – Você  já avisou Maninho, mamãe ?

         – Ainda não.  Seu pai disse que vai fazer o possível para ir à estação na hora do embarque, ouviu ? acrescentou, voltando-se para ele.

        – Está  bem,  mas  não  era  preciso papai incomodar-se... murmurou o seminarista.

            Quis  continuar,  dizer  qualquer coisa para encher aquele vazio que se fizera, mas não encontrou nada.

              Elas assistiam agora em silêncio ao seu jantar.

          Esta  reserva,  esta  quase cerimônia nas relações era um dos traços característicos daquela pequena família.

       Por um excesso de pudor que punham na demonstração de sentimentos, chegavam a parecer secos uns com os outros na própria intimidade.

             Só se expandiam inteiramente em assuntos indiferentes; e era às vezes na presença de estranhos que acontecia eles se dizerem as coisas mais graves e íntimas. Daí esta convivência parecer insuportável e deixar a impressão de que eles talvez se detestassem em seus corações.

             Enganavam-se.

           Uma grande afetuosidade, ainda que se exteriorizasse entre eles por um excesso sutil de artifícios, presidia às suas relações. Eram dessas pessoas para quem a delicadeza do trato está mais no sentimento que a anima do que na maneira de expressá-la; a forma muitas vezes chocava, porém quanto mais despida de exterioridade, mais intensa a contenção de sentimentos neles.

         Era  o tom de uma palavra,  por exemplo,  ou o olhar  que a acompanhava e não a palavra em si, que quase sempre expressava o sentido de um gesto, na aparência indiferente.

            Quando Matilde dizia: "tal coisa é assim, não é, Maninho ?", este Maninho era dito com naturalidade porque se tratava de um apelido afetuoso, não havia dúvida, mas disfarçado sob uma forma rotineira; agora, quando ela dizia: "tal coisa é assim, não é, meu irmão ?" (o que aliás raro acontecia), este "meu irmão" era pronunciado rapidamente, sem encará-lo, ou com um sorriso, que ele traduzia (e Matilde bem o percebia) assim: "está bem, minha irmã mas isto é penoso não acha ? Vamos, que é que ia dizendo você ? Continue..."

            E a conversa prosseguia ou não; uma coisa porém era certa –  o "meu irmão" não sairia mais naquela conversa.

             Isto  somente   eles  percebiam,  e   o interessante  era  que,  por um acordo tácito, cada qual fingia ignorá-lo e nunca tocavam em tais assuntos.

          Porque  era  assim? – preocupara-se  ele  muito  em  outros   tempos   – onde estava o motivo profundo daquela conduta ?

              Como  porém  não  encontrasse  outras  razões, havia concluído que era a maneira de ser, inerente aos seus próprios temperamentos. E portanto: irremediável.

           A  irmã  parecia em  tudo  com  o pai; ele,  mais de uma vez, surpreendera-se a repetir inconscientemente gestos e atitudes da mãe.

             Esta havia sido a vida inteira vítima de sua natureza complicada e estranha. Era uma dessas criaturas marcadas, ninguém sabe porquê, por uma fatalidade qualquer para o sofrimento; podia-se dizer dela: era infeliz não porque sofresse, mas sofria porque era infeliz...

           Mas  a  vida, apesar  de  tudo, havia presidido com uma sábia previdência à aproximação daqueles dois seres: o pai era um pouco diferente e estabelecia um certo equilíbrio. Dir-se-ia que ele era quem tinha o temperamento feminino, que faltava à mãe, com aquele rosto mais moço do que a sua idade e aquele sorriso cheio de uma sabedoria vivida com que aceitava tudo sem surpresas... Compreensivo e silencioso, aproximava-se agora dos cinquenta anos e, mesmo sendo um homem de saúde frágil, conservava o seu gênio afável, que adoçava a intimidade da família.

     Fisicamente, Cesário Machado era o retrato do pai; parecia interiormente com a mãe.

            De estatura um pouco além do normal, os cabelos rebeldes a cair-lhe em penacho na testa, junto aos olhos castanhos que pareciam ver longe, na fisionomia um aspecto canhestro, meio selvagem, tinha, já aos treze anos, o rosto moreno e imberbe desses adolescentes a respeito de quem os adultos observadores fazem as suas profecias sobre o destino incomum que os espera.

         Depois  que  entrara  para  o Seminário, tornara-se aos poucos quase que ascético o talhe de sua figura. Era agora um rapaz magro, muito tímido, e, para os que não sabiam ver – sereno. Aquela serenidade, entretanto, não iludia: num contato mais demorado com ele, veriam, sem demora, a surda agitação que lhe trabalhava o espírito. O Seminário, com a sua educação reclusa, desenvolvera morbidamente nele certas tendências de seu temperamento sombrio, precocemente amadurecido; nesta evolução pouco normal, o físico também fora atingido: sem ser um esgotado ou um nervoso, notavam-se-lhe entretanto uns leves tiques característicos.

       Ultimamente ele próprio observara que se havia tornado mais retraído ainda, quase monossilábico, sobretudo com os parentes.

       Naquelas  férias  mesmo,  apanhara casualmente um fim de conversa que muito o entristecera. Dizia na sala, à mãe e à irmã, uma tia por parte do  do pai, a quem havia visitado dias antes: "–  Exatamente, esteve em casa no dia seguinte. E não sei, mas já repararam ? Maninho me parece cada vez mais esquisito, ele não era assim! Quase não conversou com a gente. Foi entrar e sair..." A mãe ficara calada. Mas a voz de Matilde: "– Nós até já nem reparamos... Aqui em casa é a mesma coisa, sabe titia  ? Maninho ou sai ou então tranca-se no quarto, lendo. E nestas férias leu muito, a senhora não notou, mamãe ?"

         Fizera  barulho  para  se tornar pressentido e entrara para seu quarto, considerando aquilo.

         Estava cada vez mais esquisito, dissera a tia. Tinha razão, ele próprio também o sentia... Mas que fazer ? Não havia dúvida, como seria bom se ele pudesse ser outro com os parentes, ao menos com eles!

              Mas não o era, e infelizmente não dependia dele...

Realmente, não dependia. A observação fora justa, não havia negar, mas por outro lado, não estaria naquilo, ao menos em parte, não estaria naquilo, o motivo dessa mudança ?

          Para Cesário  aquilo  era  o seguinte: – sua família, ainda que religiosa como toda a gente no Brasil, não professava a sério religião alguma; ora à medida que ele se adiantava nos estudos e compreendia melhor esta situação, isto se tornava um motivo de tristeza permanente para ele.

             Não ousava porém tocar em tais assuntos.

        Entretanto,   sua   consciência   não  deixava  de o  acusar acerbamente deste "respeito humano" imperdoável a um seminarista...

             E como Cesário era capaz de se torturar por motivos que muitas vezes só existiam na sua imaginação, este motivo real, realíssimo e grave para ele, transformava num lúgubre fantasma de todas as horas.

              Sofria, e sofria em silêncio.

           – A  que  horas  sai  o  trem, Maninho ? perguntou de repente Matilde, quebrando aquele silêncio.

               – Às sete.

          E  Cesário  acompanhou  instintivamente o seu movimento de cabeça, ao olhar o relógio à parede.

          – Tire mais fruta... Olhe essas mangas, que estão muito boas! insistiu a mãe.

              – Não, não quero mais nada...

              Levantou-se, fez um rápido sinal da cruz e tornou ao quarto.

              Pouco depois estava de volta com a maleta.

            – Então adeus, até para o ano! – e envolveu a irmã num abraço desajeitado, ao mesmo tempo que esta lhe apertava a mão.

          Depois  tomou  a  benção  da  mãe, enquanto ela o abraçava também, e, antes que o lembrasse (Cesário sabia que ela não deixaria de lhe recomendar aquilo e queria ir ao encontro de seu desejo), prometeu escrever-lhes assim que chegasse ao Seminário.

             – Deixe a carta para o dia seguinte. Ao desembarcar passe logo um telegrama para a gente saber como foi de viagem, ouviu ?

              – Está bem! Adeus...

              – Adeus! repetiram ambas, acompanhando-o até a varanda.

            A mãe ainda lhe bateu nas costas, sacudindo com solicitude um fiapo de linha branco que se agarrara à batina.

 

 

III

 

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