Xavier Placer
"É incrível. Sim, mas é a realidade. E agora eis-me aqui, a arrumar a maleta de viagem para o embarque à noite", surpreendeu-se dali a pouco a refletir.
Abandonou-se àqueles pensamentos.
Ah, se a partida não tivesse que se realizar dentro de tão poucas horas, naquela noite, mas depois! Depois... repetia com um gesto vago.
Foi até a janela, abriu-a, e pôs-se a examinar-se: Mas afinal, queria ficar? Não, não queria. Para que ? Que lhe importavam alguns dias a mais ou a menos em casa, se ao cabo... Sim, se ao cabo teria que embarcar da mesma forma ? Não, não queria ficar. Em todo o caso, aquela contradição, aquela incoerência de sentimentos era significativa... Que quereria dizer, no fundo, aquele depois ?
Mas uma espécie de entorpecimento dos sentidos e uma preguiça mental impediam-no de seguir mais longe, aquela indagação.
Sem ânimo também para continuar o que se pusera a fazer, sentou-se à mesa e, pousando a face na mão, deixou-se ficar olhando pela janela, longínquo, sem atentar em nada.
"Que estranho em mim esta frieza, este invencível desânimo !" murmurou de súbito, saindo daquele alheamento.
Nos anos anteriores – continuou – bem o sentia, não fora assim. Não fora. Ao contrário, com que ingênuo entusiasmo embarcara dois anos antes para o Seminário Maior !
Depois de cinco anos às voltas com o curso de humanidades, assistindo durante esse tempo à partida dos colegas mais adiantados, vira enfim chegar a sua vez. A sua alegria naquela ocasião. Nada mais justo. Dali em diante não seria mais o menino que tinha de resolver problemas de matemática, tão intrincados e inúteis, nem decorar para o implacável Padre José os pronomes oblíquos em grego. Não Uma nova existência começaria dali em diante. Adeus, velho casarão do Seminário Menor, nunca mais !
Ia conhecer agora um novo Seminário – o maior do Brasil – conviver novamente com Gabriel e Mari Dias, de quem estava afastado há dois anos, e começar o curso de Filosofia. Ah, sobretudo a Filosofia! Já não conhecia, não chegara mesmo a decorar-lhe em latim a definição? E que perspectiva, que mundo, ler Santo Tomás de Aquino no original! E sobre tudo isto a consciência de que todo aquele entusiasmo traia um grande amor ao Seminário e aos estudos – sinais exteriores certíssimos da verdadeira vocação, como lhe assegurara Monsenhor reitor, com quem se entendera no fim do ano, por um excesso de escrúpulo para consigo mesmo.
No ano seguinte – e havia-o notado naquela ocasião – já não fora tão vivo o entusiasmo. Mas se explicava: nem as disciplinas do curso seriam diferentes, nem o Seminário de São Paulo constituía desta vez uma novidade para os seus dezesseis anos, impacientes e ávidos.
Era por isso – lembrava-se bem – procurara ele justificar. Era por isso, pois espiritualmente o atrativo sobrenatural para o sacerdócio não havia esmorecido, nem a sua pureza de intenção diminuíra. Não, interiormente era o mesmo; e por detrás daquela frieza exterior, a vontade continuava firme e decidida... Nada tinha a temer. E se não assistira com alegria ao termo daquele curto descanso de dois meses, fora contudo, com a indiferença de quem cumpre uma obrigação há muito transformada em hábito que ele voltara.
Mas agora... Sim, como explicar agora aquele terrível abatimento justamente nesse 1931, em que devia entrar no estudo da Teologia ? Era assim que começava um curso para o qual, afinal de contas, viera tão somente se preparando durante sete longos anos ? Era assim que ia se aproximar de seu grande ideal – o sacerdócio ?
Não, a consciência daquele desânimo diante da obrigação de partir para o Seminário, era uma funda, uma dolorosa decepção para ele. Inútil disfarçar, aquela disposição de espírito devia esconder alguma coisa de grave. Não era possível. Desta vez não se tratava de uma simples indiferença exterior, absolutamente, desta vez era uma extrema e indisfarçável repugnância por tudo o que dizia respeito ao Seminário e àquela vida e à sua vocação...
Levantou-se da cadeira e, pondo-se a andar de novo nervosamente no quarto, perguntava-se alto, contendo com violência as lágrimas: "Mas porque me sinto assim, meu Deus, porque ?"
A agitação íntima em que estava não lhe permitia porém seguir o curso de nenhum pensamento. A sua imaginação borboleteava, tocando aqui, ali, passando adiante, voltando de novo ao pensamento de há pouco, perdendo-se a seguir em pequenos detalhes que o irritavam.
Para não pensar naquilo, tentou continuar a arrumação da maleta de viagem. "Aliás já devia ter feito este trabalho pela manhã."
Pouco depois, quase sem sentir, o trabalho subterrâneo de análise recomeçava: Se ainda ao menos pudesse fazer uma confidência daquela espécie a alguém ! – pensou.
Mas não, a quem confiar um tal sentimento ? Ao diretor espiritual, a Monsenhor Henrique, logo que chegasse ao Seminário ? Não era disso que se tratava... Ele queria uma palavra naquele momento. Depois, não era de conselhos que precisava, mas um contato de alma com alguém que o compreendesse, com alguém que o sentisse como a um igual. E a figura do diretor espiritual, do velho Monsenhor, lhe surgia naquele instante ao espírito, deformada pela sua indisposição contra tudo.
Nesse caso, porque não se abrira com os amigos ? Porque não conversara com Gabriel ou Mário a esse respeito, na última vez que estivera com eles ? Aquela crise não se vinha adensando havia dias, e não passara o domingo com eles, no Palácio do Sr. Arcebispo ?
Falta de confiança ? Mas não eram ambos tão amigos dele, que poderia recear ?
E mudando de ideia: Por isso mesmo, por serem amigos dele. Que haveriam de pensar se lhes tocasse num ponto tão grave ? Fizera bem, fizera muito bem não haver falado; talvez agora estivesse ali arrependido. Ao menos sentia-se tranquilo, passava-se tudo no mais absoluto desconhecimento alheio e não escandalizara ninguém com as suas fraquezas...
Dizia isto sem convicção, tentando iludir-se, para consolar-se. No fundo o jovem seminarista sentia exatamente o contrário: Porque não falara com os amigos ? Porque não se abrira com eles ? Era sempre assim. Miserável feitio o seu. Muito amigo de Gabriel e de Mario Dias, desde os tempos de seminaristas menores, mas quando se tratava de sinceramente "franquear o teatrinho interior", como gostava de repetir Gabriel, sentia-se constrangido por um pudor absurdo, mascarava-se por detrás de generalidades que nada diziam ou não raro acabava sorrindo, encaramujado cada vez mais em seus motivos reais. No entanto, aquilo era voluntário – e como ele admirava a franqueza direta de Gabriel e o sereno equilíbrio de Mario Dias!
Na realidade, a consciência da disposição em que, independente de sua vontade, e até contra ela, se sentia, inspirava-lhe um profundo desgosto de si próprio.
Sinceramente, interrogava-se ele agora, não era como uma perda de liberdade que estava sentindo a volta ao Seminário ? E porque ? "Porque, Senhor ? Não era isto o indício de alguma coisa que se elabora surdamente em mim ?"
Involuntariamente, vinham-lhe à lembrança os colegas para quem o Seminário era uma espécie de presídio, um fardo penoso, só tolerado como estágio obrigatório para uma situação definida e melhor...
Esses , em geral aplicados (ia nisso muito amor próprio, muita vaidade de aparecer) mas tíbios, quase frios alguns, como se nada tivessem, em verdade, com o objetivo que se haviam proposto, nunca chegavam ao Seminário no dia previsto pelo Regulamento.
Inventavam cada ano novos pretextos (oh, como eram imaginosos para forjá-los e práticos para se saírem bem deles!) conseguindo sempre ficar em casa algumas semanas mais.
Como aprofundando a causa de seu desânimo, o jovem seminarista se esforçava sobretudo por vencer o sentimento de derrota que o dominava, investia contra si próprio: "Mas estarei, no fundo, querendo fazer parte destes colegas ?. Desta vez é de todo impossível, mas quem sabe se no ano que vem não estarei também a inventar uma doença à última hora ? Ou isto (era o que mais temia, e este pensamento voltava-lhe a cada instante) será o começo da perda da vocação ? Não será assim que se começa ?"
A pilha de romances sobre a mesa pareceu-lhe, de súbito, uma acusação muda. Olhou para aquelas brochuras e sentiu-se intimamente culpado.
"Porque estou tentando iludir-me a mim mesmo ? Não é verdade, – e deixou-se ficar parado, com os olhos sobre a "livrarada" em desordem – que estas leituras têm contribuído bastante para o meu estado de espírito atual ? Não digo que sejam a causa única. Isso seria exagero. Mas que há qualquer coisa da grave nesta fuga é evidente..."
Por uma associação de ideias, lembrou-se a esta altura das palavras do diretor espiritual.
Insistira Monsenhor Henrique em sua última prédica, na véspera da partida para as férias:
"Cuidado com as leituras durante esses dois meses, meus filhos. Um mau livro que vos caia nas mãos desprevenidas pode tornar-se... (ele evocava o tom persuasivo de Monsenhor Henrique, que havia sublinhado estas palavras) o começo da perda irreparável de uma vocação. Vede bem, meus filhos. E nesse ponto não vos iludais: o mau livro nunca é aquele que o é abertamente. Oh, não! Satanás inventa mil artimanhas para se insinuar, ele é terrível. Como ? direi vós. E eu vos respondo: o mal está no "espírito" que certas leituras destilam sem a vossa jovem inteligência pressentir, eis aí. Nada de jornais, e muito menos essas brochuras de ocasião – meras novidades de livraria, literatura sem orientação filosófica, sensorial e triste. Se amais a literatura – eu vos aconselho – abeberai-vos antes da eloquência sagrada, da história, da arqueologia, etc. Ou a ficar ociosos, entregai-vos a trabalhos manuais, no jardim, por exemplo, ou a outra ocupação não contrária à modéstia eclesiástica".
Pegou uma brochura de romance cuja ilustração berrante da capa estava a incomodá-lo e fê-la desaparecer entre outras, enquanto reconsiderava as palavras de Monsenhor Henrique.
Noutras ocasiões achava medíocres certas ideias do velho padre e – Mario Dias não se cansava de combater nele esta tendência para a crítica – ajuntava também a sua observaçãozinha irônica ao comentário dos colegas sobre o diretor espiritual.
Mas naquele momento elas lhe falavam tanto ao espírito, eram tão verdadeiras naquela circunstância, que não podia deixar de lhe dar razão e comover-se.
Como estava longe do tipo que Monsenhor Henrique pintara, naquela mesma prédica, do seminarista que devia ser! Lembrara-se de ensinar catecismo às crianças da paróquia ? Lembrara-se de rezar o ofício de Nossa Senhora ? Como se havia de lembrar, se, envolvido em "literatura", descurara dos deveres mais imediatos de seu estudo ?
Com que impaciência ajudara à missa, certas manhãs, na pressa de voltar às suas leituras, a imaginação desgarrada dias a fio naquelas páginas! Quantos dias sem comungar, e a confissão, de que havia quinze dias não se aproximava!
Ao pôr-se a arrumar a maleta, logo que entrou no quarto, a sua primeira preocupação foram os romances, ainda não lidos, que queria levar para o Seminário. E enchera o fundo da maleta de um bom número deles.
"Mas seja qual for a causa, pensou, ainda é tempo para reagir, Sim, eis a medida que devo tomar – reagir. Monsenhor Henrique não gosta de repetir, na sua habitual mania de falar por aforismos: "nem nunca é tarde para reagir ? É o meu caso. Que diacho, devo ser um pouco mais sensato. Quem quer os fins quer os meios. A literatura pode ser uma coisa muito boa, a própria Igreja não o nega, mas para mim, que me preparo para o apostolado, essa atividade é secundária. Primeiro a formação espiritual, a minha vocação. Já que a literatura me vem afastar de meu objetivo tenho obrigação de a repudiar. E é o que vou fazer. Não devo levar estes livros. Pois não os levarei", decidiu de repente.
Tomar decisões bruscas, às vezes extremas, decisões que surpreendiam toda a gente, inclusive a ele próprio, e sobre que só ia refletir depois (e quantas e quantas vezes para voltar atrás) era muito de seu temperamento apaixonado. Ultimamente, esta maneira de ser agravava-se com uma crise psicológica da idade: atravessava um período de transição: falta de compreensão interior, condições entre o falar e o agir, posição quase simultânea de sentimentos. Enfim, tudo isto se resumia numa só coisa – o traço característico de todos aqueles que vivem segregados do mundo – a sua inexperiência da vida.
Um a um, começou a retirar os livros da maleta. "Não levarei nenhum, nenhum!" repetia. "Assim eu me obrigarei, mesmo que depois me arrependa, a ficar o ano inteiro afastado destas leituras. Chegando ao Seminário faço uma confissão geral, entendo-me depois com Monsenhor Henrique e darei novo rumo à minha vida espiritual – porque se não me detenho a tempo, talvez quando quiser reagir... Mas não, o propósito está feito, é só esperar. Aliás amanhã mesmo estarei no Seminário e tudo há de mudar. Ah, tudo há de mudar, se Deus quiser!" murmurou, sentindo-se contente consigo próprio. "Afinal, uma vez que combato tão prontamente a causa, ou o que me parece ser a causa deste sentimento de derrota, é porque a minha vontade, apesar de tudo, não está de todo enfraquecida".
Procurou ainda umas notas que tomara, no entusiasmo das suas leituras, e rasgou-as, sem as reler.
Agora só desejava uma coisa: era ver-se de uma vez no Seminário, entre as paredes de seu cubículo, e pôr em execução aquele plano.
Uma imensa tranquilidade veio aos poucos tomar o lugar de sua agitação do começo. E, sem ele próprio dar conta, estava dali a pouco a cantarolar, baixo, muito baixinho, as palavras de uma Salve Regina, que se tocava no Seminário pelas ocasiões mais solenes.
Pag
05/32
