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- ENTÃO, meu filho, quando terminam as férias? havia-lhe perguntado o vigário naquela manhã. 

        – Hoje, Padre Augusto. Embarcamos logo mais à tarde.

      – Já? admirara-se o padre. Parece que ainda estou a vê-lo chegar ontem...

    Era o que ele sentia também. Não, não exagerava, refletia o seminarista, entrando agora em seu quarto com um ar desgostoso e pensativo. Tinha a impressão de haver chegado do Seminário na véspera! Aqueles últimos dias de dezembro, janeiro, e, num abrir e fechar de olhos, lá se fora fevereiro...

      Caminhou até a mesa onde se viam livros de ficção misturados a grossos e severos compêndios de Filosofia e Teologia, apanhou seu "diário" e, como quem busca uma explicação para si próprio, ainda que de antemão bem saiba que não a achará, pôs-se a folheá-lo, relendo algumas anotações aqui e ali..

27 de Dezembro.

        Faz hoje uma semana que cheguei do Seminário. Voltei da igreja pela manhã com este pensamento, que me perseguiu o dia inteiro: estarei pondo em prática os propósitos tomados para as férias  no retiro do fim do ano? Mas porque esta preocupação? Não serão simplesmente escrúpulos? Por não ter comungado hoje? Tolice, pois o motivo foi independente de mim: quando cheguei à igreja, Padre Augusto já havia celebrado a missa e saído. Quanto a padre-coadjutor continua doente..

      Por me ter sentido um pouco satisfeito que a coisa se tivesse encaminhado dessa forma? Mas que vício esse meu de ficar esmiuçando até o fundo os próprios atos! Não quero pensar mais nisso, e amanhã vou bem cedo para a igreja.

30 de Dezembro.

       Passei o domingo de hoje em Companhia de Gabriel, no Palácio Arquidiocesano. Assunto de nossa conversa: literatura. Gabriel esteve lendo para mim os seus últimos poemas. Chamei-lhe a atenção para o que havia de "literário" em alguns deles. Não quis concordar in toto com certas opiniões minhas. Acha-me radical, subjetivista demais. Argumento dele: aceitar a arte como um artifício para chegar ao conhecimento. Não sei me explicar, mas seja qual for a obra que me venha às mãos, encontro sempre no fundo qualquer coisa que me desgosta... Horrível, essa arte que através do prestígio da Beleza endossa os piores e mais tristes erros morais. Há certas resistências que ainda não consegui vencer. Vencê-las-ei algum dia?

 

 

 

 

 

 

 

1º de Janeiro, 1931.

 

      Desde que cheguei ao seminário ainda não vi Mário Dias. Estou sentindo falta dele. Gabriel também me confessou o mesmo da última vez que nos encontramos. Disse-me (sorrindo) que é Mário o único colega de quem tem certeza absoluta de que se ordenará, e mais  – será um sacerdote como poucos. 
      Estive quase para não anotar o que se passou hoje pela manhã comigo. Enfim, como ninguém, a não ser eu leu este diário, decidi-me. A coisa foi, aliás muito simples, mas como me deixou perturbado o resto do dia! Ao entrar na igreja com Padre Augusto para ajudar-lhe a missa, meus olhos se encontraram (é verdade que foi sem querer) com os de uma mocinha que estava ajoelhada na primeira fila de bancos. Não sei porque, não me retirei logo (nisso fui bastante culpado). Depois, durante a missa, senti que ela me observava, ao ao tornar à sacristia não resisti à tentação de a procurar com os olhos. Não há como negar; isto é um grave começo de dissipação, vou procurar meu confessor hoje mesmo. Como inicio eu o novo ano, meu Deus! 

       8 de Janeiro.

       Longa conversa com Mario. Assistimos juntos à  missa, na Glória, e depois saímos a pé pela rua, conversando. Vimos Carlos Alberto, que fingiu não nos ter notado. Ia acompanhado e apertou o passo quando deu por nós... Eu ainda tentei um comentário a respeito. Mario não proferiu palavra. Sugeriu apenas que passemos para o lado do mar, o que acedi e fizemos largo trecho calados. 

      À  altura  do  Flamengo – havia um bom número de banhistas na praia – ele começou a tocar numas coisas... Interessante, jamais pensei que Mario sofresse dessas crises. Vive-se ao lado de uma pessoa anos a fio – e quão pouco as conhecemos. Cada dia vão-se revelando novos aspectos. E como ele a soube caracterizar bem! Chamou-lhe a "consciência da marca".  É isso mesmo.  Ainda hei de conversar sobre isso com Gabriel. Mario tem a razão: o drama fundamental de todo o seminarista em férias é justamente esse – a sensação da diferença, de isolamento, de um quase rancor (inconsciente) em relação a tudo o que os leigos consideram os valores normais da vida. 

      Ainda um dia destes, quando vi Tilda sair para a praia com umas amiguinhas, senti-me invadido por esse sentimento, sem compreendê-lo.  E já em outra ocasião, quando chegou do cinema à noite, deu-se a mesma coisa...

      Não seria possível um ascetismo de que não estivessem excluídos esses pequenos prazeres, tão humanos ? (Pedir esclarecimentos a Padre Tobias sobre Ascética e Mística). Há uma semana que venho lendo desordenadamente...

     22 de Janeiro.

      Acabo de escrever uma longa carta a Padre Tobias. Vou mostrá-la amanhã a Gabriel. Aproveitar para conversarmos sobre minhas novas disposições a propósito de arte. Não quero mais saber de literatura, estou farto de todo esse psicologismo noturno. São todos uns caluniadores da vida... Hei de convencer disto a Gabriel.

      26 de Janeiro.

       Encontro  com Gabriel. Devolvi-lhe o livro que me emprestara e foi por aí que começou a nossa conversa. Tinha pensado que iria encontrar resistência em convencê-lo de que devia pôr de lado as preocupações literárias e encontrei-o no mesmo estado de espírito. No primeiro momento – o que será que me faz assim absurdo ? – estive quase para contradizê-lo... Por fim confessei-lhe isto, e ele riu. Ficou prometido entre nós parar com as leituras e poemas.

       31 de Janeiro.

       Novo  encontro  com  Mario. Não me lembro a propósito de que, esteve a contar-me  – e com que entusiasmo, meu Deus !  – certas passagens de sua infância. Realmente ele não tem razão de queixas  – foi bem o tipo de menino que teve infância. Filho único de uma família muito religiosa, economicamente estabilizada, esses anos correram-lhe num verdadeiro mar de rosas, como se diz. Imprudente Mario. Se soubesses o mal que a tua conversa me fez ! Foi ela, não há dúvida, que me levou a passar o dia inteiro perseguido por lembranças que nunca me são lá muito grato evocar, A verdade é que minha infância foi bem diferente da dele, não teve nada mesmo de amável.

     Mas por que será que ao contrário de outras, certas pessoas começam a ser roubadas pela vida desde os primeiros anos ? Não, quando olho para o feroz, para o nada sentimental espetáculo da vida, eu vejo tudo, tudo ! menos os vestígios da presença da Providência. No entanto, isso não me tira a fé em Deus. Como conciliar o meu sentimento e a realidade  é que não sei...

                                                     1º de Fevereiro, 8 horas da noite.

       Relendo agora estas notas, observei que passei o dia de ontem terrivelmente sentimentalizado. Mas afinal, como queria eu que tivesse sido minha infância ? E em última análise que teve ela de diferente de tantas outras ? Como nós valorizamos egoisticamente os nossos pequeninos sofrimentos, meu Deus ! E é incrível como nesses momentos não o percebemos... Não, não acuso ninguém, nem mesmo a própria vida. Ainda hoje, folheando um livro de De Maistre, vi este pensamento que se gravou na minha memória: "... tout à la fin tournera pour le mieux".

        Sim, cada vez mais me convenço de que nada do que é vivo se perde, oh, nada !  E o que haverá de mais vivo do que o sofrimento ? Às vezes tenho a impressão de que verdadeiramente nascemos para um destino ascético e que só encontraremos o perfeito domínio de nós próprios, no dia em que nos dispusermos, de espírito e coração, a aceitá-lo.

         Oh, como eu procurei fugir sempre ao meu destino !  Mas eis que o seu segredo se revela agora bem claro. É preciso ser puro, simples e bom – que tudo o mais virá como acréscimo.

 9 de Fevereiro.

        Gabriel deu-me a ler um pequeno poema que – confessou com seu sorriso habitual – perpetrou no dia 26 à noite. (Pensar que nesse mesmo dia, pela manhã, havíamos prometido um ao outro não tocar mais em literatura). Gostei e ofereceu-me. Quero-o no meu diário:

RENOVAÇÃO

O meu ser se rejubila

porque os tempos se aclararam.

A luz que iluminara as regiões invisíveis

está brilhando de novo,

lá no alto,

na casa luminosa das estrelas.

Agora meus olhos repousam,

onde aquela doida agitação

que vinha perturbar a festa inocente do espírito ?

Minha alma tem ares puros para respirar.

planícies claras para passear,

brinquedos raros, canções novas,

horizontes largos para contemplar.

Ondas leves

emergem

purificadas

da velha paisagem cansativa.

16 de Fevereiro.

           Aproxima-se o Carnaval. Dom Moura convidou-nos a passar esses dias com ele. Irei. Como Gabriel está passando lá as férias, eu o terei nesses dias. Mario é que não estará, vai para Petrópolis. Deusdedit, Brandão, Delmir... O grupo não é mau.

23 de Fevereiro, quarta feira de cinzas.

         Voltei hoje do Palácio Arquidiocesano onde fui passar os três dias de Carnaval com mais alguns colegas, a convite do Sr. arcebispo. Tomamos as refeições principais com Dom Moura à mesa. Assunto das conversações: vida de Seminário, recepção de "ordens" do terceiro e quarto anistas de Teologia, perguntas a um e a outro. Hoje, ao almoço, tocou-se em assuntos de aula e a conversa tomou um rumo imprevisto. 

          Nunca  me  perdoarei o que fiz ! Cometer a inconveniência de me por (quase) a discutir com o Sr. arcebispo. Aliás o culpado foi Delmir, que encaminhou a conversa para lá, indagando de Dom Moura "se a Igreja havia errado e se reconhecia como tal certos veredictuns seus atacados por autores leigos".

       Dom Moura  fez  uma distinção entre o corpo doutrinário (este infalível) e o corpo administrativo (este passível de erro) da Igreja – o que satisfez ao Delmir. Ainda foi mais longe: acrescentou que a igreja, no entanto, por prudência, para não escandalizar os fiéis (a grande maioria) incapazes de compreender essas coisas, preferia silenciar , etc.

        Todos  se  mostraram  satisfeitos com a explicação. Foi a esta altura, que eu me intrometi (é o termo) na conversa. Meu argumento era que "em Filosofia, ciência à luz natural da razão, era contraditório admitir-se que Deus fosse, ao mesmo tempo, infinitamente bom e infinitamente justo, porquanto Bondade e Justiça se excluíam". Dom Moura começou dizendo que eu colocava mal a questão: "Deus não é infinitamente bom nem infinitamente justo, porém, a Bondade e a Justiça em essência". Respondi-lhe que ainda assim não estava destruída a validade de meu argumento, que aquilo apenas ajudava a colocá-lo mais claro. Ele pôs-se então a explicar. Mas notei que descambara para a Teologia e interrompi-o. Que não esquecesse disto: eu havia colocado a questão em Filosofia, pois sendo a fé o critério, naquela não há discussão. Mas ele afirmou que havia compreendido (notei-lhe um movimento de impaciência), que colocava a resposta no terreno da Filosofia, enfim um mal-entendido e ...

          Com um gesto brusco, virou a página para não terminar a leitura do incidente cuja lembrança ainda agora lhe era desagradável, continuou folheando para a frente... "Quanta tolice. Não sei para que anoto tudo isto", murmurou.

          E fechando o caderno, atirou-o sobre a mesa, pondo-se, os braços cruzados, a andar de um lado para outro em seu quarto.

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II

A escolha

I

 

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