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I

A partida

 

   

PASSARA a noite em claro. A expectativa da viagem, na manhã seguinte, tirava-lhe o sono como durante o dia lhe havia tirado a vontade de tocar em qualquer alimento. Andava todo ele numa sobreexcitação febril, impaciente.

          Ao tocar o silêncio geral, às nove horas, ainda tentara meter-se no leito. Era preciso estar descansado para um dia inteiro de viagem! Mas dentro em pouco via que isto não passava senão de simples raciocínio. Os mais absurdos pensamentos exaltavam-lhe a imaginação, escaldavam-lhe sobre o travesseiro as faces...

        Levantou-se. Apesar do frio e da espessa escuridão que pesava sobre o edifício do Seminário, postou-se à janela de seu cubículo.

          Um ativo cheiro de jasmim subia dos canteiros do pátio, trazendo-lhe uma confusa sensação de noite, frio e silêncio... Quanto tempo esteve debruçado sobre o peitoril? Ouviu o relógio grande da portaria soar as doze lentas pancadas da meia noite, depois a pancada solitária de uma hora, depois as duas, as três. Galos cantavam longe, um cão ladrava sem cessar mais longe ainda... Não ouviu as quatro, mas lembrava-se desta última impressão se distanciando e confundindo na sonolência em que foi caindo pela madrugada.

          O toque habitual de despertar veio arrancá-lo brutalmente do leito. Cinco horas. De seu cubículo, ouvia agora o ruído dos colegas a se prepararem. Também fazia o mesmo; porém, quando eles pouco depois se revestissem da sobrepeliz para a missa, enfiaria o capote e, apanhando a maleta, desceria só e em silêncio – com que emoção, meu Deus, pela última vez! – a branca escadaria de mármore do Seminário...

           Ao chegar à estação – mais um pouco e seriam sete horas – já os raios frouxos de um sol de julho se insinuavam por entre a densa garoa que envolvia as coisas naquela manhã.

        "Que frio, meu Deus!" dizia junto à janela do carro, na gare, um senhor encapotado esfregando as mãos. A mulher de chapéu preto murmurou em resposta qualquer coisa sobre luvas.

          Sorriu. Só agora é que reparava que de fato estava frio. Tornou a vestir o capote, que pouco antes dobrara, e debruçou-se à janela do carro, à espera do momento da partida.

          De  onde  estava  via  o relógio da estação. Na sua impaciência, tinha a impressão de que o tempo não passava. Sentava-se, levantava-se, tornava a sentar-se, tornava a levantar-se. E o relógio na mesma. Dir-se-ia que o frio havia imobilizado os ponteiros...

         Enfim  o  toque  da  sineta  retiniu na atmosfera embaçada da manhã, o trem pôs-se em marcha lentamente.

          Inefável instante. A intensidade da comoção alvoroçava-lhe com violência o coração. "Afinal ali, liberto de tudo para sempre!" foi seu primeiro pensamento.

          A velocidade da máquina aumentava, imprimindo aos carros um movimento balanceado e rítmico. E à medida que a marcha do trem se tornava mais veloz, como que se avolumava nele uma íntima convicção de vitória, que punha para trás, para o seu passado, aquela desfilada de lembranças que a memória estava a evocar sem esforço... "Voltarei, (ele sabia que assim que o trem partisse seria dominado por estes pensamentos e entregava-se a eles como a um prazer longo tempo esperado) voltarei algum dia a este lugar? Nesse tempo futuro, se isso acontecer, este instante, este! (dizia isto o si próprio como querendo avaramente reter o minuto que fugia...) será um momento extático em meu passado. Com que sentimento me recordarei dele? Agora estou aqui tranquilo e feliz; estarei feliz e tranquilo nesse dia futuro? Como vão longe os dias de sofrimento e dúvida, oh, como vão longe! Primeiro foi a indecisão diante dos obstáculos a vencer, o enervamento  – o terrível enervamento – quando a situação se ia tornando difícil e, por fim, a obsessão de partir... Ah, esta viagem tão longamente, tão detalhadamente premeditada para ludibrio da imaginação exigente e insatisfeita! Meu Deus, parece um sonho tudo isto. Sim, mas é a realidade largo tempo esperada. De agora em diante uma nova existência começa para mim!"

            E ao mesmo tempo que uma voz interior o chamava para dentro de si, e queria refletir, pensar – os olhos, e com eles todos os sentidos, queriam ver, queriam sentir, não sabia o quê, eram intensamente solicitados para fora.

             "Como nós somos senhores dos nossos atos! Só agora, mas não quero pensar nisso...(contudo deixava-se levar) só agora, ao afastar-se do ambiente do Seminário é que começo a ver claro o sentido de cada fato. Sim, pois no fundo, ao contrário do que até há pouco julgava, esta decisão de sair eu não a tomei no dia em que disse a Padre Tobias que tudo já estava resolvido... Nem tampouco na noite de minha última entrevista com Monsenhor Henrique. Não. A verdade é que são mais os pequenos do que os chamados grandes sentimentos que nos determinam... Talvez esta decisão eu a tenha mesmo tomado é no dia em que, entrando em meu cubículo, achei-me estranho a mim mesmo... Ou quem sabe até se não vem de muito mais longe; sim, vem, percebo-o agora, posso tomar como ponto de partida aquela tarde em que, findas as férias, tornei sem Gabriel e Mário para o Seminário. Não resta dúvida, foi nesse dia... Lembro-me bem com que desânimo cheguei em casa, me pus por desfastio a folhear meu "diário", e em seguida a preparar-me... Curioso, mas afinal porque, porque saio do Seminário? Está aqui um sentimento que nunca julguei possível num momento destes. Sim, porquê saio? Sinceramente não sei... Mas eis-me de novo às voltas com isso, não, já disse, não quero tocar nessas coisas, não quero. O passo está dado – tenho uma estranha intuição de que não andei errado. Não, repetiu ainda, não, fui coerente comigo mesmo, o tempo se encarregará de mostrar-me os fatos com mais lucidez. Como dizia mesmo Gabriel? Como era? Ah, me lembro: "É preferível a escolha do erro a nenhuma escolha". E, escondendo-se por detrás desta reflexão, sentiu que a tranquilidade lhe voltava de novo ao espírito.

        Tranquilidade? Deixou a janela, sentando-se. Dali, como em um filme natural, pôs-se a contemplar quase com interesse os recortes imprecisos da cidade. São Paulo ficava. A sua floresta de chaminés e telhados ia naufragando na garoa matinal... Não havia dúvida de que o entusiasmo do primeiro momento fora aos poucos esmorecendo. Agora nem alegre nem triste. Ou os dois sentimentos ao mesmo tempo. Mas muito quieto. Alegria dolorosa de convalescente...

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