Xavier Placer
ERA um poeta - um apaixonado da Beleza.
Sua aparência o denunciava. Alto, mãos brancas e longas, tímido de gestos e silencioso: um ar sonhador e sempre ausente. Não estando condenado à feia luta terra-a-terra - filho de burgueses vitoriosos em várias gerações - foi passando pelos cursos normalmente, um dia viu-se feito doutor.
Mas o melhor de seus dias era dado à Arte.
Amava ficar em casa estirado na poltrona de sua biblioteca, lendo autores prediletos em cuidadas edições. Na extrema juventude, sensível às exterioridades, encantou-se pelos românticos, com eles se exaltou no culto barroco da palavra; depois alegrou-se com a límpida água dos clássicos; nada disto era ele. E logo, num encontro de si mesmo, descobriu as figuras dolorosas de Baudelaire, Rimbaud, Antero, Rilke, Pessoa, a família toda dos solitários.
Amava também, e sobretudo, ficar à toa sonhando acordado muitas horas. Um nada bastava. Dentro da noite, como era grato olhar o claro-escuro que o ramo móvel do chorão do jardim, atravessando a vidraça, rendava na parede... e partia em viagens fantásticas, a ilhas fabulosas, a eldorados - seu clima.
A ação o horrorizava como uma perda de substância, um desgaste inglório. Seus movimentos eram todos no sentido de se fecundar espiritualmente, de engrandecimento do ser. Tinha decisões assim: num dia de verão madrugava e saía sozinho para um ponto alto da cidade, para assistir ao nascimento do Sol. Mergulhava num êxtase de ideias e sentimentos. E quando de todo o Sol se erguia iluminando as pedras e os homens, ele recolhia à casa preservando contra a realidade, a realidade de seu sonho.
Havia o Amor. E ele, pelo privilégio de classe, estaria fadado a colher aí maravilhosamente as rosas simbólicas. Mas para tal devera ser outro. Depois de uma ligação sentimental que ao findar não teve dele um gesto para durar mais, no amor limitava-se a aventuras vulgares. O que fazia com certa inquietação, como se estivera sendo infiel a si mesmo. Não era só repugnância: os beijos venais deixavam-lhe amarga tristeza.
Muitas mulheres cirandavam à sua volta; era excelente partido. Mas o sonhador distraído transformava-as em amizades que se iam substituindo, durando umas menos, outras mais, nenhuma vincando uma saudade maior, levadas todas pelo mesmo vento que as trouxera... Para as mais afoitas permanecia um "mistério". Isto divertia-o: algumas vez diante de uma prova de ternura retribuía com uma confidência à amiga gentil: "Não nasci para o amor. Não me sinto indigno dele, sinto-me incapaz. O amor a uma mulher, a vida em comum com ela, pelo casamento ou não, me obrigaria a abdicar de tanta coisa que me é caro... Jamais farei esta abdicação. De resto devo reconhecer, já passou a minha hora..."
Assim falava, e assim pensava sinceramente à véspera dos quarenta anos - ah, os quarenta anos, um fim de vida!
E foi então que o amor se revelou a ele.
Bela? Excepcional? No esplendor dos vinte e dois anos, era uma promessa de felicidade - e parecia nascida para durar sempre. Que perpétua alegria! Que transparência! A viva paixão por tudo o que engrandece ardia dentro daquele inocente animal de seleção e expandia-se em ondas que ela própria ignorava.
Foi breve o noivado. D. adorava o fausto; apaixonado ele a levou ao altar esplendente em seu vestido branco. Ele próprio sentia-se alguns anos mais moço, a realidade tinha novas faces, dimensões e coloridos novos. Era outro homem. Como num sonho partiram para o estrangeiro. Viram cidades e monumentos, museus e ruínas famosas (ele era o cicerone exaltado); saturaram-se de pitoresco e exotismo; hospedaram-se sobre avenidas vertiginosas e plácidos caminhos entre montanhas - lugares todos onde os mais pequenos desejos inspiravam atenções grandes, e viver era uma arte.
Voltaram. O apartamento, de arquitetura funcional, em tonalidades claras, era o ambiente natural para aquela mulher. Ela mesmo se empenhara na decoração. A primeira providência foi eliminar o mobiliário inútil, idealizando peças que desenhou, e cuja feitura obedeceu à sua orientação. Tinha gosto; nada escapou ao seu interesse apaixonado: o tecido das cortinas, a distribuição da luz, a harmonia das linhas. Telas que ele guardava enroladas e onde se liam as dedicatórias do artista, foram emolduradas e valorizaram a muda verticalidade das paredes.
O apartamento descerrava as janelas para o mar. Quando sobrevinha temporal arremessavam-se contra a areia vagalhões ameaçadores; mas era calmo, verde enseada de espuma, onde uma brisa salina soprava... D. gostava de trazer os convidados para o terraço e ficavam ali, numa sociedade restrita mas assídua, bebendo, ouvindo discos, fumando.
Nem sempre recebiam. Alguns dias eram reservados a passeios, um concerto, uma visita. Na estação, retiravam-se para uma cidade de serra. D. detestava casa de campo, preferia hotel; com antecedência, havia que reservar acomodações. E era uma azáfama, porque a veranista elegante precisava renovar todo o guarda-roupa.
A princípio envolvido nas seduções dessa nova existência, tão diferente dos dias sóbrios de antigamente, ele julgou que sua fortuna seria suficiente para manter aquele padrão de vida. Tinha uma avultada renda imobiliária. Exatamente nem colocou a questão. Vivia e deixava-se viver ao lado daquela jovem mulher, que recebia ou tomava o luxo como um direito, sem lhe prestar atenção - acaso se podia viver de outro modo?
Mas de volta da cidade, um dia no qual a "nota" da Kanitz foi muito maior do que esperava, teve uma violenta revelação. Levou dias pensativo. Era preciso inventar uma nova fonte de renda! Aguardou a Bolsa favorável, negociou certo número de títulos, associou-se a um parente, ativo e conhecedor, num empreendimento extrativo de cristal de rocha.
E com espanto, reconheceu-se capaz daquela coisa que lhe parecera a mais difícil para um homem: ser prático. Isto é, capaz de ganhar dinheiro. Era tudo questão de dispor-se... sujar um pouco as mãos e nunca mais abrir um livro.
As transações do cristal tinham a vantagem de não lhe tomar tempo e prosperar. Tudo seguia conforme os cálculos: a inversão do capital compensava plenamente.
Mas precisava ganhar ainda mais!
Um encontro de café com velho colega de Faculdade, advogado de renome no cível, decidiu o novo rumo. E ele que até havia esquecido de que era bacharel! Estava adquirindo fina perspicácia para o que convinha: ainda naquele dia comprou um anel: um rubi grande rodeado de diamantes.
E cada dia descobre na vida ativa encantos novos...
Certas tardes porém ao voltar para casa em seu carro - isso acontece quando por acaso sozinho surpreende entre as nesgas de céu, céu de chumbo da cidade grande, uns estranhos tons violetas - torna-se melancólico como alguém que em meio a uma festa fosse tocado pela lembrança inoportuna de um morto, e tudo indica que ele não é inteiramente feliz.
Nem somente lia ou devaneava, algumas vezes escrevia. Mas apenas quando visitado pela Musa - meu amigo acreditava em Musa. Assim, quando lhe saía das mãos, embora escasso, não trazia só a marca da autenticidade, a par do talento, mas era to the happy few. E, insatisfeito, meu amigo abandonava pelo caminho estes frutos, que eu recolhia. Contudo ao vê-los, os seus poemas em letra de fôrma nas páginas ilustradas dos suplementos, nas revistas, sorria, sentia uma clara alegria.
Que durava efêmera manhã de domingo. Qual uma vestal. Qual uma vestal, em sua alva indumentária, longe da multidão. Assim tomava a sério a poesia - avatar, sonho, razão de ser de sua vida naqueles dias antigos. Pois logo os esquecia. Mais: abominava-os, nunca se animando a reuni-los, "Um livro. Você sabe (me dizia) que não me move a vaidade. Publicar, para quê?"
Os poemas que aqui se leem, sob este título que (talvez) não lhe desagradaria, embora não sendo os melhores que o meu amigo escreveu, estes são os mais característicos.
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