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I

A S F A L T O

HOMEM DEBRUÇADO SOBRE A TARDE

              Há dias em que vemos a descoberto a urdidura

           do tempo.

 

                         Joaquim Nabuco, In Pensamentos Soltos.

 

NOS longes do mar, esquadrilhas de gaivotas faziam evoluções em largos remígios. Cúmulus encastelavam-se no horizonte sobre o vulto assombrado das montanhas. Vela branca deslocava-se à esteira plúmbea da água, levemente encrespada. Havia ainda, menos distante, um renque de palmeiras a baloiçar os verdes leques na perspectiva infinita.

      Súbito, pondo uma nota de religiosidade na paisagem, soou un lento badalar de sino. Seis horas. Era o Ângelus. 

 

FOI esse toque que tirou o homem do ensimesmamento em que mergulhava, sentado naquele banco da Glória. Que fazia ali? Na verdade dissipara à toa aquele dia. Como tantos outros, ultimamente. Certos novos dias viriam, cobrindo com a pátina do esquecimento aquela separação. Mas compreendia isto com pensamento abstrato, pois hoje a ausência doía. Por quanto tempo ainda?

      Teve um gesto de indiferença, como pessoa que trocou um mal irremediável em secreto prazer, e dilatou os olhos para o quadro que se descortinava ao redor de si. Lá estava, à esquerda, a colmeia de arranha-céus da Cinelândia, crivados de janelas, que não tardariam a iluminar-se. A cidade. Sim, a grande capital, a Urbs, a Metrópole de dois milhões de habitantes. Fronteiro, naquela ponta de terra, o bloco cor de cinza da Escola Naval a posar em silêncio. Aquelas manchas reluzentes. Conhecia-as: eram os gigantes de alumínio, pousados em linha ao longo da pista cimentada do Aeroporto Santos Dumont. E ao fundo, entre as dobras da montanha, lá estava Niterói, ou mais exato, Icaraí, São Francisco, Jurujuba, passeios sentimentais de outros tempos, ela derreada em seu braço... Naquela altura era mar alto. Não podia ver dali, mas à direita erguia-se o Pão de Açúcar, a Urca, e continuando, estendendo-se além, o Cristo Redentor abençoava a cidade do pedestal do Corcovado.

      Envolveu tudo num olhar, e, por instantes, abstraiu-se contemplativo, esquecido de seus motivos. Considerava a paisagem vespertina como a tentar apreender a impressão viva, a nota íntima equivalente que ela refletia no fundo de seu espírito.

      - Tarde incomparável, tarde divina e efêmera, aqui estou diante de ti. Mas na verdade não és minha. Ou pertences-me apenas de certo modo: projeção de mim mesmo, ser complexo e desgraçado. Quisera-te, porém, de outra maneira. Quisera-te no que és em teu mistério de cor e forma. Em ti mesma, sim, e não como espelho de minh'alma, não como imagem sublimada, síntese de outras muitas tardes que não tornarão nunca mais. Estamos sentenciados a jamais nos aproximarmos: tais as nossas essências fundamentalmente opostas, irredutíveis, talvez no fundo inimigas. Miseráveis que somos (falo de mim, não de ti), dissociamos quando tocamos e não apreendemos das coisas senão aspectos fragmentários, esboços de originais... Sonâmbulos. Que fazemos? Estamos no tempo. É um agitar-se, peixes cegos, em aquário. Águas turvas. Batemos contra as paredes, e dá-nos a dor a certeza de que existimos. Loucos, inflamos o peito e tomamos ares de atores. Comediantes. É o que somos Comediantes. Está aí a nossa forma de nos acreditarmos senhores do universo. E amanhã novos farsantes virão ocupar a ribalta, para enfermar de igual doença. Ai de nós, vítimas do mal sem remédio do eterno divórcio entre os seres e as coisas, entre uma alma e outra alma...

      E em seu coração agravou-se aquele magoado sentimento de abandono, exílio e solidão...

 

APÓS uma série de lugares comuns, a voz do speaker silenciou no rádio do bar próximo. Agora a Ave Maria de Gounod solenizava a melancolia da hora. Suas notas, plangentes e doces, insinuavam-se entre o rolar dos bondes e ônibus. Quedou-se a ouvi-la.

      Cessada a música, levantou-se resolutamente, relanceou um olhar pelo jardim solitário e, cabeça baixa, dirigiu-se para o lado do mar, andando ao acaso, sem rumo, na tarde agonizante, a murmurar uma frase (seriam versos?) que lera não se lembrava onde, nem de quem: "E por toda a parte Ceres contempla a profunda humilhação do homem..."

 

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