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carioca típico talvez não queira saber dos hinos que estrangeiros interessados cantam às belezas da Guanabara, ao Pão de Açúcar, ao Corcovado e o resto. Pois bem, hoje sou, graças a Deus, carioca adotivo. Quer dizer, nunca estive no Pão de Açúcar nem visitei o Corcovado. Nem fui jamais a Niterói. Em compensação, Niterói veio visitar-me.

      Chegaram-me de Niterói os originais das "IMAGENS DA CIDADE", obra de quem já é conhecido como poeta de ficção, tão poeta que não precisa ter receio de escrever em prosa.

      Poeta, Xavier Placer é; mas certamente não é poeta no sentido vulgar da palavra. Não é um exaltado que vive em raptos de imaginação meio divina, meio maluca; tampouco uma cabeleira desesperada, candidato permanente ao suicídio. Não é romântico. Muito menos é burguês disfarçado de romântico. É trabalhador consciencioso. Não improvisa. Não admite a eloquência fácil. Escreve estilo depurado, dir-se-ia destilado, estilo de essências que mais esconde do que revela os sentimentos subjetivos. Se tem medo de alguma coisa, então será o medo de despir sua alma. Mas sabe revelar as almas das coisas e das casas; as almas das criaturas e das ruas; a alma da cidade.

      Não acredito cometer uma indiscrição ao citar os dois poetas que o próprio autor das "IMAGENS DA CIDADE" considera como seus modelos; Aloysius Bertrand e Baudelaire, o Baudelaire do "Spleen de Paris". São os criadores do poema em prosa. Mas não criaram o assunto. As primeiras imagens da cidade de Paris, embora menos poéticas, talvez sejam as que escreveu Rétif de la Brétonne. Nos manuais de história literária seu nome apenas sobrevive como o de um precursor do naturalismo. Mas Rétif de la Brétonne também foi, nas entrelinhas de seus romances meio grosseiros, porta. Só um poeta era capaz de escrever a frase seguinte: "Que de choses à voir lorsque tous les yeux sont fermés!" Sei bem que o cronista da vida noturna de Paris apenas quis dizer, com isso, "de noite" substituindo a palavra por engenhosa antítese rousseauniana. Mas nós outros hoje, o entendemos melhor do que ele mesmo se entendia: o poeta fecha os olhos para ver. Poeta assim, em prosa, é Xavier Placer: fechando os olhos para ver as imagens da cidade.

      Definem-no o primeiro subtítulo e o primeiro sub-subtítulo (perdão!) do livro: aquele, "Asfalto"; este, "Homem debruçado sobre a tarde". Eis a antítese poética que compreende os dois aspectos opostos de "IMAGENS DA CIDADE". As imagens debaixo daquele título são porém sintéticas. Sintetizam, objetivamente, a vida da cidade. Não sei, nem me caberia indicar aqui, quais são as melhores. As mais características talvez sejam as que descrevem uma mulher tuberculosa ("Flor obscura"); o último ferrador ("Contrastes"); e as linhas ("M. P.") dedicadas a um amigo perdido. Essas e outras imagens, embora pareçam instantâneos independentes, só revelam seu verdadeiro sentido dentro do quadro panorâmico deste livro muito organizado. Isoladas, parecem-se com versos rimados que o vento da vida baralhou. Mas formam, juntas, o caleidoscópio poético da cidade.

     O Rio de Janeiro que existe dentro deste livro não é apenas a cidade maior e mais típica do Brasil; é a imagem fiel de todas as cidades brasileiras, sobretudo das provincianas e inclusive do Rio de Janeiro provinciano que já se foi. É, talvez, a imagem de todas as cidades provincianas do mundo cujo provincianismo está agonizando. Pois quem fixou estas imagens não é um regionalista de paisagens urbanas. Contudo, a poesia não admite as generalidades; uma suprema lei lhe manda ficar, sempre, concreta. Daí nosso autor não inventou uma cidade nas nuvens. Seu Rio de Janeiro existe. Até Niterói existe. Voltamos para a terra, ou antes, para as águas onipresentes desta nossa terra. A paisagem inconfundível das "IMAGENS DA CIDADE" é a baía de Guanabara.

      Talvez se encontre, um dia, alguém para escrever a história literária da Guanabara, dos hinos balbuciantes dos primeiros românticos através das alusões veladas de Machado de Assis até as confissões de Lima Barreto. Pois bem, em uma das "IMAGENS DA CIDADE" ("Adolescentes") aparece a sombra de Machado de Assis; desaparece logo, assim como é, aliás o hábito das sombras. Quanto aos dois citados polos de nossa história literária, já se disse que nosso Placer não é romântico; por outro lado, não deverá haver, na literatura nacional inteira, escritor algum com que ele se pareça menos que com Lima Barreto. Talvez nem goste dele. Mas eu gosto, e não posso resistir à tentação de citar a "Vida e morte de Gonzaga de Sá": "Saturei-me daquela melancolia tangível, que é o sentimento primordial da minha cidade. Vivo nela e ela vive em mim".

      Muitas vezes já repeti para mim, essa confissão comovida. Hoje também, num domingo longe da Guanabara e das suas belezas tantas vezes cantadas com acentos tão falsos, digo aquelas palavras, de olhos fechados para ver, para ver as imagens da cidade. Nunca mais as esquecerei, enquanto esses olhos não se fecharem para sempre. Carioca como sou, não admitindo a independência de Niterói, anexei para a minha cidade o autor das "IMAGENS DA CIDADE": meu amigo Xavier Placer. Devo-lhe uma recompensa, evidentemente. Mas só posso dizer: obrigado, querido amigo, obrigado por este seu livro.

 

OTTO MARIA CARPEAUX

 

RIO DE JANEIRO

COPACABANA, MARÇO DE 1951

 

 

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